segunda-feira, 9 de junho de 2025

A leitura em voz alta como ferramenta de revisão

Todo tradutor profissional sabe que, antes de entregar uma tradução, é importante fazer uma revisão cuidadosa do texto final. Para isso dispomos de diversas ferramentas que ajudam a garantir a qualidade técnica, a correção linguística e a consistência da tradução, como a função de QA (Quality Assurance) de sua Cat Tool, o assistente de escrita inteligente integrado ao Word, que identifica, entre outras coisas, erros ortográficos, gramaticais, de estilo, de construção, linguagem ofensiva, e ainda, o recurso de leitura em voz alta também disponível no Word, mas que também pode ser encontrado em diversos aplicativos ou plugins de navegador.

Aqui vou falar da última opção, que é também a última etapa do meu processo de revisão: a leitura em voz alta combinada com a leitura visual. Em meu caso, uso o recurso do Word disponível na guia “Revisão”, opção “Ler em Voz Alta”, que permite ainda personalizar a leitura mediante o ajuste de velocidade e a seleção da voz do leitor.



Por que gosto tanto desse recurso? Porque depois de horas trabalhando num texto na tela do computador, nossa mente e visão já estão tão cansadas e familiarizadas com o que está escrito que não conseguem identificar os erros, porque nosso cérebro, sabendo o que deveria estar escrito, completa as lacunas e corrige pequenos erros, enganando nossa visão. E é aí que entra a leitura em voz alta. Ao combinar dois métodos diferentes para processar a informação — leitura visual e leitura auditiva —, conseguimos identificar erros que poderiam passar batidos se utilizássemos somente a visão. Nosso ouvido capta os erros que nossos olhos deixaram passar. Além disso, nossa concentração aumenta ao evitar a distração com ruídos externos e potenciamos nossa percepção da “musicalidade” do texto, o que nos permite identificar cacofonia, isto é, a repetição de sons que provocam eco ou sons desagradáveis resultantes da junção de palavras: “... a boca dela” (cadela); a repetição excessiva de uma palavra, erros de pontuação, trechos truncados ou muito longos e confusos. Ou seja, a leitura em voz alta dispara outros alertas em nosso modo revisor. Eu recomendo usar a voz de um terceiro em lugar da própria voz para evitar as armadilhas de nosso cérebro das quais falamos antes.

Ao revisar uma tradução própria, também é importante deixar o texto “descansar”, procurar uma posição confortável, fazer pausas regulares, diminuir o brilho da tela, aumentar o tamanho da fonte, usar óculos de leitura e trabalhar com iluminação adequada, sem reflexos, num ambiente silencioso e calmo.

Você já utiliza esse recurso para revisar suas traduções? Tem alguma outra dica para revisar uma tradução própria?

Deixe seus comentários! 

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Toda literatura tem um quê de autoajuda?

Confesso que antigamente eu olhava para a literatura de autoajuda com certo desdém, como se fosse uma escrita superficial através da qual o autor diz aquilo que o leitor quer ouvir, a minha desconfiança aumentava à medida que eu via esse tipo de livro ocupar cada vez mais espaço nas prateleiras das livrarias prometendo uma solução mágica para os problema mais complexos, sejam eles financeiros, de saúde, de relacionamento, de autoestima ou espiritualidade.

É claro que é preciso separar o joio do trigo, assim como em todas as outras categorias literárias há os livros bons e os ruins, há aqueles que só pretendem nos vender promessas milagrosas, mas também há aqueles escritos com ética e responsabilidade, por profissionais comprometidos ou por pessoas que desejam compartilhar uma experiência pessoal para ajudar outras pessoas que possam estar enfrentando dificuldades semelhantes. Hoje vejo que há muitos bons livros de autoajuda e motivacionais baseados em experiências pessoais, pesquisas e evidências, que promovem a reflexão e a autonomia do leitor. Mas, o verdadeiro valor desse tipo de literatura não está tanto no conteúdo, mas sim na reação que desperta no leitor, se o texto conseguir impactá-lo ou confortá-lo de alguma forma, promover uma mudança positiva, isso é o que de fato importa.

Édipo e a Esfinge, de Gustave Moreau

O que me levou a escrever este texto é que me dei conta de que toda literatura têm em si mesma um quê de autoajuda. A origem da literatura ocidental é atribuída às obras de Homero, a Odisseia e a Ilíada, na Antiguidade Clássica com a literatura greco-latina. Nas tragédias gregas existe o conceito de catarse, definido por Aristóteles como um processo de purificação emocional do público ao assistir à representação de uma tragédia. O termo "catarse" deriva do grego "katharsis", que significa "limpeza" ou "purificação". As tragédias retratavam personagens nobres e heroicos que enfrentavam grandes conflitos e dilemas internos e externos como a luta entre o destino e a vontade humana, a guerra e a disputa pelo poder. Um exemplo de tragédia é a de Édipo rei, que passa a vida tentando fugir do destino, mas acaba derrotado por ele. O objetivo era fazer que o público, ao assistir às representações, lidasse com emoções intensas de terror e piedade para libertar-se delas e experimentar uma sensação de alívio, conforto e renovação.

Narciso, de Caravaggio
Quando lemos um livro, ocorre algo parecido: colocamo-nos na pele das personagens e experimentamos seus conflitos internos, seus sofrimentos, suas angústias, e imaginamos o que faríamos no lugar delas, que decisões tomaríamos, qual seria nossa atitude. Muitas vezes questionamos nossos preconceitos, desenvolvemos a empatia, mudamos de opinião, reconsideramos nossas convicções e nos autoavaliamos. Já dizia o escritor espanhol Carlos Ruiz Zafón que “os livros são espelhos: neles só vemos o que carregamos dentro”. Para um verdadeiro crescimento, no entanto, é necessário livrar-se desse narcisismo de querer enxergar a nós mesmos em tudo que vemos ou lemos, e perceber que no enredo da vida nem sempre somos os protagonistas, muitas vezes não passamos de coadjuvantes ou de meros figurantes, e nem por isso somos insignificantes ou prescindíveis.

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Resenha do livro "La fiesta del chivo", de Mario Vargas Llosa

Bom dia, meus queridos leitores!

Que bom tê-los por aqui!

Hoje acordei com vontade de falar, de escrever. Acabei de chegar do mercado com meu carrinho de compras quase explodindo, como sempre, e, no caminho, eu já vinha pensando com meus botões no que iria escrever. Pensei: “Quando eu chegar em casa, só vou guardar as coisas rapidinho e já vou logo escrever, antes que as inspiração vá embora”.

Decidi escrever uma resenha literária sobre um livro que me impactou bastante, “La fiesta del Chivo” (A festa do Bode), do escritor peruano falecido recentemente, prêmio nobel de literatura e membro da Real Academia Española, Mario Vargas Llosa.

Antes, preciso fazer um preâmbulo para falar de minha tia... Já falei dela aqui em outra ocasião. Foi ela quem me indicou este livro. Nós temos o nosso “clube de leitura”. Quando descobrimos que tínhamos esse gosto em comum pela literatura, começamos a ler obras juntas, o que trouxe muito mais sabor para as leituras. Quase sempre é ela que faz a “curadoria”, simplesmente porque ela já leu quase todos os livros que existem... É sério, gente! É difícil sugerir alguma coisa inédita. Ela já leu todos os livros que vocês possam imaginar, até os livros que ainda não foram publicados e os que ainda não foram escritos!!! Sem falar que ela lê vários livros ao mesmo tempo. Só para vocês terem uma noção ela está lendo a coleção de 60 volumes de Historia de España, de Ramón Menendez Pidal, essa é a leitura intermitente dela. Então como ela tem uma bagagem tão ampla, muitas vezes acaba fazendo uma releitura comigo para relembrar obras emblemáticas da literatura hispano-americana e também universal. Essas indicações enriqueceram muito minha bagagem também, ela me apresentou Fortunata y Jacinta, de Benito Pérez Galdós, e La Regenta, de Leopoldo Alas Clarín, clássicos da literatura espanhola, que dizem muito sobre a sociedade, a vida e os costumes da Espanha do século XIX. Para mim, como tradutora de espanhol, é muito importante conhecer essas obras, tanto do ponto de vista cultural como linguístico.

Feito o preâmbulo, vamos ao livro. Obviamente não vou fazer um resumo nem vou dar spoiler. Só vou falar dos aspectos que mais me impressionaram. Primeiramente, a escrita de Vargas Llosa, sempre impecável, convincente e envolvente. A técnica narrativa é também magistral, mas é preciso estar muito atento para captar todos os detalhes, conexões e referências.

O pano de fundo é a ditadura de Rafael Leónidas Trujillo na República Dominicana, que se estendeu por 31 anos, de 1930 a 1961, um assunto que eu desconhecia por completo. Na escola, aprendi mais sobre a história da Europa do que sobre a história latino-americana.

A narrativa não é linear, ela intercala passado e presente e alterna três planos distintos, ou perspectivas, como preferirem. Há o plano narrativo do retorno de Urania, filha de uma figura importante do governo Trujillo que acabou caindo em desgraça. Depois de um autoexílio de 35 anos sem se comunicar com ninguém da família, nem mesmo com o pai que ficou incapacitado após sofrer um AVC, Urania retorna dos Estados Unidos para enfrentar os velhos fantasmas que deixou para trás.

Outro plano se centra na conspiração para assassinar Trujillo, por um grupo de homens que ocupavam altos cargos no governo, mas que mudaram de lado após sofrerem na pele os abusos e as injustiças do regime. Chama a atenção a determinação desses homens que estão dispostos a abrir mão da própria vida em nome da restauração da liberdade. Esse grupo forma um esquadrão praticamente suicida, pois dificilmente conseguirão retornar ilesos para casa.

Por fim, o terceiro plano está voltado para o último dia de Trujillo, chamado Jefe, Benefactor, Padre de la Patria Nueva, Generalísimo, Excelencia. Nesse plano Trujillo relembra sua trajetória, de menino pobre, terceiro de onze filhos de um pequeno comerciante e de uma mestiça de ascendência franco-haitiana, mais tarde conhecida como Mamá Julia.

O governo de Trujillo foi uma das ditaduras mais cruentas da América Latina. Sob o pretexto de ter modernizado e desenvolvido o país, de ter restaurado a ordem e de ter conseguido a estabilidade financeira acabando com a dívida externa, Trujillo foi se fortalecendo e foi se tornando uma lenda, alguém infalível capaz de multiplicar os pães e o vinho, alguém que nem sequer transpirava sob o implacável sol dominicano. Ele se valeu desses aspectos positivos de seu governo para se tornar um ditador e justificar seu lado mais sombrio, usando o terror para eliminar qualquer oposição através da tortura, da perseguição, da espionagem e da delação. Junto com seus irmãos, familiares e seu séquito de aduladores conseguiu dominar todas as instituições e acumular um vasto poder econômico e político ao se apropriar de boa parte da indústria e do comércio do país, e monopolizar setores-chave da economia dominicana como a indústria açucareira.

Outro aspecto destacado no livro foi seu famoso apetite sexual, cínico e descarado, que não se contentava em ter suas amantes, mas que chegava ao ponto de se relacionar com as mulheres de seus colaboradores mais próximos, literalmente o desejo sexual dele era uma ordem. Esperava-se que as mulheres escolhidas se sentissem honradas e privilegiadas por servi-lo. Os maridos, por sua vez, dispostos a pagar qualquer preço para ganhar a confiança do Jefe, engoliam o orgulho e se faziam de sonsos.

Preciso dizer também que este livro têm umas partes muito violentas e intensas que podem causar muito desconforto e mal-estar, mas vale a pena encarar. Acho que já dá para ter uma ideia do impacto desta obra... Então espero ter conseguido despertar sua curiosidade e vontade de lê-la. 

Ah, já ia me esquecendo de mencionar que também existe a versão cinematográfica e homônima, que também vale a pena conferir.

Até a próxima!

terça-feira, 27 de maio de 2025

12 anos de blog: — Saúde!

Quando o assunto é comemoração, todo mundo sabe: a etiqueta e o bom senso preconizam não comemorar antecipadamente. Mas ninguém fala nada sobre comemorar dois anos depois, né? Pois é exatamente isso que estou fazendo: celebrando os 10 anos do blog com um pequeno atraso de dois aninhos. O que, fazendo as contas, dá... 12 anos.

Mas convenhamos: 12 anos soa bem! Nos destilados, o selo 12 years old indica complexidade, equilíbrio e suavidade. É verdade que minha escrita não tem a sofisticação do whisky, mas ela tem o sabor autêntico da cachaça artesanal.

Quando comecei, tinha aquela ansiedade de falar de tudo, comentar tudo, participar de tudo. Achava que tinha muita coisa a dizer — e talvez até tivesse. Mas hoje, depois de 12 anos escrevendo, lendo, observando, errando e tentando acertar... continuo aqui, tagarelando, mas aprendi a valorizar mais as entrelinhas, a absorver mais e extravasar menos. Embora isso dependa muito do dia, pois, como boa geminiana que sou, um dia acordo tagarela; e no outro, reservada

Então é isso: esse texto é um brinde meio atrasado para comemorar esses 12 anos de jornada, de escrita que às vezes divaga, mas nunca estagna. E assim mesmo, é divagar, é divagar, é divagar... é divagar, divagarinhooo.

Confesso que a data passou batida, nem vi! Neste caso, não porque a memória esteja falhando — o que não deixa de ser verdade —, mas porque venho trabalhando bastante e mal tenho tempo de escrever no blog ou de publicar no Instagram. Então o objetivo deste post é fazer uma espécie de balanço ou retrospectiva desses 12 anos. Bora lá!

Mas antes, eu preciso abrir um pequeno parêntese para falar de uma curiosidade linguística relacionada aos destilados. Sabia que eles respondem à alcunha de “bebidas espirituosas”? Pois sim, pois sim, pois sim... Essa expressão tem sua origem nos alquimistas que, ao destilar o vinho, obtinham uma substância inflamável, à qual chamavam espírito do vinho. Para os alquimistas, o espírito era a parte mais sutil, o princípio da vida e da transformação. Lembro que aprendemos isso nas aulas de literatura, quando a professora nos falou sobre o absinto, bebida destilada conhecida como “fada verde”, que alguns escritores, como, por exemplo, Baudelaire consumiam para alcançar um estado onírico e expressar suas ideias.

[fecha parênteses]

Voltando ao assunto, criei este blog que vos fala em janeiro de 2013, pouco depois de terminar uma pós-graduação em Tradução de Espanhol, pela extinta Universidade Gama Filho, depois de ter concluído o curso de Letras Espanhol, na UFSC. Eu estava muito empolgada naquela época, ligada no 220 v, com muitas ideias, muita vontade de trocar figurinhas, compartilhar conhecimento e de fazer meu “merchan” também, né? Afinal, eu queria muito conseguir oportunidades. Já estava trabalhando como tradutora técnica numa empresa de tecnologia havia cinco anos e já prestava serviços de tradução e versão como autônoma para algumas agências de tradução.

Eu não fazia a mínima ideia de como criar um blog, pois minha experiência se limitava a visitar as páginas de outros tradutores e buscar inspiração no que eles postavam. Mas sempre fui cabeçuda, do tipo que quer inventar a própria versão daquela receita milenar, cortar o cabelo em casa, tentar consertar a máquina de lavar assistindo vídeos no YouTube... Falando nisso, eu era tão enfiada, que em 2001 — uma odisseia no espaço —, euzinha, uma pacata dona de casa fui fazer um curso de web designer. Acredite se quiser! Eu queria achar alguma coisa que pudesse fazer em casa e ainda descolar uma graninha. Então pensei: bolo no pote ou web designer? Então optei pelo mais fácil :D Se bem que eu acho que o bolo no pote teria rendido mais frutos... rss Já dizia meu pai que me falta um parafuso!

Mas, voltando a 2013 e ao assunto do blog, fui pesquisar a respeito e optei pela plataforma gratuita Blogger, da Google, que permite criar e gerenciar blogs de forma simples e intuitiva, ela oferece alguns modelos prontos e você só precisa personalizá-los, escolhendo temas, adicionando páginas, gadgets (pequenas ferramentas, como, por exemplo, um contador de visualizações, ou um gadget para seguir a página, entre outros).

Escolhi o nome “Tradutora de espanhol” porque eu queria algo bem direto, e minha intenção era que as pessoas pudessem encontrá-lo facilmente, e também porque foi o primeiro nome que me veio à cabeça. Ralei muito para conseguir colocá-lo no ar, precisei escolher um tema, decidir os assuntos que eu iria abordar, e o mais difícil de tudo: começar a escrever. Sempre prezei pela qualidade, então queria abordar assuntos relevantes, com boas referências e visando levar à reflexão, de uma forma leve e descontraída também. Optei por falar de tradução, gramática, literatura, cultura e afins, intercalando os temas e mantendo a assiduidade.

Uma coisa engraçada é que às vezes eu demorava horas e horas pesquisando um assunto interessante, escrevendo e reescrevendo, e as visualizações eram bem minguadas. Enquanto outras vezes eu pensava em algo bem banal, do tipo “Como se diz ‘legal’ nos diversos países hispanofalantes?”, e a postagem “bombava”... Vai entender?

O fato é que mesmo sem entender nada de SEO, posicionamento, marketing e nem mesmo de blogs, e, sem ter um padrinho ou robôs para impulsionar o trâfego, não somente consegui colocar meu blog no ar, como também consegui posicioná-lo entre os primeiros resultados do Google ao pesquisar por “tradutora de espanhol”... Ai, que demais!!! Não me perguntem como fiz isso, mas eu fiz. Quando vi meu humilde blog ali nas primeiras posições do Google senti como se estivesse no topo da Billboard... só alegria!

Como eu sou um pouco prolixa em minhas narrativas, vou tentar traduzir isso tudo a números:

12 anos de existência

2.355.467 visitas até 27/05/2025

594 publicações

126 seguidores

17 entrevistas

11 resenhas literárias

0 reais em monetização

1 xingamento (um ser muito evoluído teve a audácia de deixar um comentário me mandando tomar naquele lugar. Espero que ele encontre a luz!)

Entre os destaques positivos, estão as entrevistas, as resenhas literárias e os textos sobre a profissão; e entre os negativos, minhas crônicas rocambolescas.

Como mencionei nos números, financeiramente meu blog me rendeu “zero dinheiros” se considerarmos a conversão de tráfego em receita. Também não ganho nada com publicidade ou coisa que o valha. Por outro lado, o blog me trouxe segurança, conhecimento, amizades, reflexão e muito prazer. E, em termos profissionais, me trouxe várias oportunidades de trabalho, inclusive na tradução literária, que é o que eu mais amo fazer. Por tudo isso, fico feliz de olhar para trás e relembrar esta trajetória, um tanto quanto acidentada, mas muito gratificante!

Ah, sim, além daquele xingamento, também recebi alguns elogios, viu? E também já tive a honra de ser plagiada. Já ia me esquecendo. Deve haver alguma razão para isso, não?

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Olhos de... olhar...

            Hoje, como um urso que sai de sua toca após um longo período de hibernação, acordei com uma ideia para um artigo sobre um assunto que me fascina bastante em matéria linguagem: a relação entre texto e imagem.

Lembrei de uma das aulas que mais marcou minha formação acadêmica. Fazia parte da disciplina Literatura e Cinema; uma aula que discorreu sobre a relação entre o sentido da visão e a realidade. Se não me falha a memória, esse era o xis da questão. A professora falava da necessidade de ver para acreditar, de como o cinema recria a realidade e a transforma ou a deturpa, e dos efeitos que as imagens produzem em nós. Enquanto o cinema se vale da estética da imagem, a literatura se vale da linguagem, e o leitor reconstrói, através de sua imaginação, uma imagem visual daquilo que está sendo descrito e narrado. Por isso a leitura é uma experiência tão singular, porque cada leitor constrói sua imagem particular, enquanto na tela do cinema todos os espectadores veem a mesma cena.

Naquela ocasião, a aula começou com um repertório de ditados e provérbios relacionados à visão:

Vi com esses olhos que a terra há de comer” e  vi com meus próprios olhos”, duas frases que dão conta do poder da visão como testemunha inquestionável da realidade.

Por outro lado, “o que os olhos não veem o coração não sente”, provérbio geralmente relacionado ao adultério e que traz a ideia de que enquanto não houver um flagrante de infidelidade haverá felicidade, que por extensão aplicamos a outras situações, como, por exemplo, à forma como uma comida é preparada... Se a comida é gostosa, mas a higiene de sua preparação é duvidosa, usamos essa frase para afirmar que, se não vemos algo desagradável, não sofremos por isso.

Olho por olho, dente por dente”, para transmitir a ideia de vingança, de fazer justiça retribuindo um mal com outro.

Em terra de cego, quem tem um olho é rei”, que afirma que num ambiente onde a maioria das pessoas tem limitações, mesmo uma pequena vantagem pode fazer uma grande diferença.

Os olhos são a janela da alma”, significa que os olhos revelam os sentimentos e o caráter de uma pessoa.

Depois desse compilado de frases que nos mostrou o peso do sentido da visão em nossa cultura, falamos de sua relação com a percepção da realidade. Lembro que comentei com a professora que eu havia assistido a um filme espanhol — El orfanato —, um filme de suspense em que a protagonista tinha visões sobrenaturais, e, num momento dado, uma médium explica: “No se trata de ver para creer, sino de creer para ver”, que sugere que é preciso estar predisposto para ver além do óbvio. Ou seja, o que vemos está condicionado a nossas crenças.

Como se tratava de uma disciplina sobre literatura e cinema, assistimos ao filme Blow-up, dirigido por Michelangelo Antonioni em 1966, que é uma adaptação do conto Las Babas del Diablo, escrito por Julio Cortázar em 1959. O protagonista é um fotógrafo que captura as imagens de um casal discutindo num parque, e, ao revelar as fotos, percebe algo suspeito e resolve investigar. Tanto o conto como o filme podem ser interpretados como uma metáfora sobre o poder de congelar momentos tanto por parte do escritor como do fotógrafo, a relação entre realidade e fantasia, sobre enxergar apenas o que queremos ver. E ainda, sobre como o escritor pode participar ou intervir nos fatos.

A respeito dessa relação entre texto e imagem, escrevi também aqui no blog uma resenha do filme “Por falar de amor” (em inglês, Words and Pictures), no qual o ator Clive Owen interpreta um desiludido professor de literatura a ponto de perder o emprego, que decide desafiar a professora de arte e pintora, interpretada por Juliette Binoche, a travar uma disputa entre os alunos de ambos para ver quem consegue transmitir um significado maior: as palavras ou as imagens. Para ler essa resenha, clique aqui.

Enfim, a presença do sentido da visão, dos olhos e do olhar é uma constante em nossa cultura, há diversos exemplos, como o da tragédia grega Édipo rei, que culmina com Édipo furando os próprios olhos como punição por não ter conseguido driblar seu destino. Ou o mito da Medusa, uma mulher amaldiçoada da mitologia grega que transformava em pedra todo aquele que olhava diretamente para ela. Temos também o mito da caverna de Platão, que faz uma alegoria à visão além das aparências. O conto de E.T.A. Hoffmann, O homem de areia, uma narrativa fantástica sobre uma figura sinistra que roubava os olhos das crianças que não iam para a cama, história serviu de inspiração para muitas outras criações. Não somente a visão, como também a falta dela são temas presentes na literatura, como é o caso do Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. São temas que povoam nosso imaginário e se cristalizam em crenças populares como o mau-olhado ou olho gordo, que atribuem desgraças ao olhar invejoso de alguém, tradicionalmente associado à ideia de “secar com os olhos”. O assunto é inesgotável, mas não posso deixar de citar a sábia frase do nosso querido pequeno príncipe: “O essencial é invisível aos olhos”.

Neste momento, estou relendo Memórias póstumas de Bras Cubas, e não pude deixar de lembrar de uma das figuras metafóricas mais bonitas de nossa literatura, em Dom Casmurro, quando Bentinho se refere ao olhar de Capitu como “esses olhos de ressaca”. Cabe aqui uma anedota... Quando li o livro pela primeira vez, meu português era ainda muito incipiente, e eu muito nova para a magnitude da obra, o que me levou a pensar nos olhos da pessoa que está de ressaca pelo consumo excessivo de álcool: a visão dupla e embaçada, as olheiras em volta dos olhos. Mais tarde, pude captar o verdadeiro sentido da metáfora: o do olhar com a força do mar que arrasta tudo para si durante a ressaca. Referindo-se ainda ao olhar de Capitu, o agregado da família de Bentinho, José Dias, disse: “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, ou seja, um olhar malicioso, enigmático e traiçoeiro.

Quanto a outro assunto que também me fascina, o léxico, toda essa reflexão despertou minha vontade de compilar uma lista de adjetivos que qualificam o substantivo “olhar”, para convertê-la em uma nuvem de palavras. Eis o resultado:


Uma nuvem de palavras é uma representação gráfica da frequência e do valor de uma palavra numa determinada fonte de dados. Neste caso, não há uma relação de hierarquia, pois o objetivo foi simplesmente criar um material de consulta para usar naquele momento em que procuramos um adjetivo que qualifique com precisão o “olhar” que queremos descrever.

Por hoje é só! E, pra vocês, eu deixo apenas meu “olhar 43”.

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Como se diz em espanhol “ficar a ver navios"?



A expressão “ficar a ver navios” surgiu em Portugal e há quatro hipóteses que podem explicar sua origem. A primeira defende que, no tempo das grandes navegações e descobertas, muitos portugueses ficavam em Lisboa, num morro chamado Alto de Santa Catarina. Alguns autores dizem que se tratava de armadores esperando as caravelas que vinham de continentes além-mar, trazendo vários tesouros; outros dizem que eram sebastianistas que se recusavam a acreditar na morte de D. Sebastião, rei de Portugal, desaparecido na África, na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578, e, por isso, ficavam no Alto de Santa Catarina esperando pelo retorno do rei. O certo é que o D. Sebastião nunca retornou e que essas pessoas ficavam “a ver navios”, ou seja, ficavam frustradas por não verem seus desejos realizados.

A segunda hipótese defende que as mulheres ficavam observando os navios que chegavam aos portos para encontrarem seus maridos, muitas vezes sem sucesso. Daí a expressão: “ficou a ver navios”, ou seja, ficou esperando por algo que não aconteceu.

A terceira explicação revela a expressão "ficar a ver navios" no sentido de ser enganado por alguém. Em 1492 foi determinado que os judeus que não se convertessem ao catolicismo teriam de deixar a Espanha até ao fim de julho. Milhares então se deslocaram para Portugal. O casamento do rei D. Manuel com D. Isabel, filha dos Reis Católicos, fez com que aceitasse a exigência espanhola de expulsar todos os judeus que moravam em Portugal que não se tornassem católicos, num prazo que ia de janeiro a outubro de 1497. O rei Dom Manuel precisava dos judeus portugueses, pois representavam toda a classe média e a mão-de-obra, e eram também uma grande influência intelectual. Se Portugal os expulsasse como fez a Espanha, o país teria que enfrentar uma grande crise.

O rei de Portugal tinhas esperanças de que, retendo os judeus no país, seus descendentes se convertessem ao cristianismo como resultado da influência da cultura católica em Portugal. Para isso, tomou medidas extremas, chegando a ordenar a retirada de menores de 14 anos dos pais para que fossem convertidos. Posteriormente marcou uma data de expulsão na Páscoa. Quando chegou a data do embarque daqueles que não aceitaram o catolicismo, ele afirmou que não havia navios suficientes para os levar e ordenou um batismo em massa dos que estavam reunidos em Lisboa esperando o transporte para outros países. No dia marcado, estavam todos os judeus no porto esperando os navios que não vieram. Todos foram convertidos e batizados. O rei então declarou: não há mais judeus em Portugal, são todos cristãos. Muitos foram arrastados até a pia batismal pelas barbas ou pelos cabelos. Daí teria surgido a expressão: “ficaram a ver navios”, porque haviam sido enganados.

A quarta e última explicação para a expressão está relacionada à fuga da corte portuguesa para o Brasil, em 1807, quando ocorreu a primeira invasão de Portugal pelas tropas napoleónicas. Os  invasores pretendiam não somente ocupar o território português, mas também capturar a rainha e o príncipe-regente. Depois de muitas hesitações, a corte e a nata da sociedade lisboeta fugiram rumo ao Rio de Janeiro nos navios de uma esquadra anglo-portuguesa, levando consigo tudo o que tivesse valor. Ao entrar em Lisboa, as tropas francesas ainda conseguiram avistar os navios, por isso se diz que o marechal Junot ficou “a ver navios”, isto é, não conseguira alcançar seu propósito.

Em espanhol, a expressão mais próxima é “Quedarse (o dejar a alguien) con un palmo de narices”, isto é, ficar em ridículo ou frustrado naquilo que esperava conseguir. “Cuando me dijo que ya no quería salir conmigo, me quedé con un palmo de narices”. O termo palmo se refere a uma antiga medida de comprimento que aludia à distância entre o extremo dos dedos polegar e mindinho com a mão estendida. Certamente a expressão está relacionada a esta forma de deboche, que consiste em encostar o dedo polegar na ponta do nariz, estender a mão e mover os dedos. De qualquer modo, a expressão pode muito bem referir-se aos enormes e ridículos narizes postiços usados por aqueles que representavam personagens engraçados ou bobos no teatro, os mesmos que hoje são usados pelos palhaços de circo.


Fontes:

Diccionario de dichos y frases hechas, de Alberto Buitrago (1995).

Etimología. ¿Por qué se dice quedarse con un palmo de narices?

https://spanish.stackexchange.com/questions/19640/por-qu%C3%A9-se-dice-quedarse-con-un-palmo-de-narices#

Significados. Expressões populares.

https://www.significados.com.br/ficar-a-ver-navios/