quarta-feira, 10 de julho de 2024

Olhos de... olhar...

            Hoje, como um urso que sai de sua toca após um longo período de hibernação, acordei com uma ideia para um artigo sobre um assunto que me fascina bastante em matéria linguagem: a relação entre texto e imagem.

Lembrei de uma das aulas que mais marcou minha formação acadêmica. Fazia parte da disciplina Literatura e Cinema; uma aula que discorreu sobre a relação entre o sentido da visão e a realidade. Se não me falha a memória, esse era o xis da questão. A professora falava da necessidade de ver para acreditar, de como o cinema recria a realidade e a transforma ou a deturpa, e dos efeitos que as imagens produzem em nós. Enquanto o cinema se vale da estética da imagem, a literatura se vale da linguagem, e o leitor reconstrói, através de sua imaginação, uma imagem visual daquilo que está sendo descrito e narrado. Por isso a leitura é uma experiência tão singular, porque cada leitor constrói sua imagem particular, enquanto na tela do cinema todos os espectadores veem a mesma cena.

Naquela ocasião, a aula começou com um repertório de ditados e provérbios relacionados à visão:

Vi com esses olhos que a terra há de comer” e  vi com meus próprios olhos”, duas frases que dão conta do poder da visão como testemunha inquestionável da realidade.

Por outro lado, “o que os olhos não veem o coração não sente”, provérbio geralmente relacionado ao adultério e que traz a ideia de que enquanto não houver um flagrante de infidelidade haverá felicidade, que por extensão aplicamos a outras situações, como, por exemplo, à forma como uma comida é preparada... Se a comida é gostosa, mas a higiene de sua preparação é duvidosa, usamos essa frase para afirmar que, se não vemos algo desagradável, não sofremos por isso.

Olho por olho, dente por dente”, para transmitir a ideia de vingança, de fazer justiça retribuindo um mal com outro.

Em terra de cego, quem tem um olho é rei”, que afirma que num ambiente onde a maioria das pessoas tem limitações, mesmo uma pequena vantagem pode fazer uma grande diferença.

Os olhos são a janela da alma”, significa que os olhos revelam os sentimentos e o caráter de uma pessoa.

Depois desse compilado de frases que nos mostrou o peso do sentido da visão em nossa cultura, falamos de sua relação com a percepção da realidade. Lembro que comentei com a professora que eu havia assistido a um filme espanhol — El orfanato —, um filme de suspense em que a protagonista tinha visões sobrenaturais, e, num momento dado, uma médium explica: “No se trata de ver para creer, sino de creer para ver”, que sugere que é preciso estar predisposto para ver além do óbvio. Ou seja, o que vemos está condicionado a nossas crenças.

Como se tratava de uma disciplina sobre literatura e cinema, assistimos ao filme Blow-up, dirigido por Michelangelo Antonioni em 1966, que é uma adaptação do conto Las Babas del Diablo, escrito por Julio Cortázar em 1959. O protagonista é um fotógrafo que captura as imagens de um casal discutindo num parque, e, ao revelar as fotos, percebe algo suspeito e resolve investigar. Tanto o conto como o filme podem ser interpretados como uma metáfora sobre o poder de congelar momentos tanto por parte do escritor como do fotógrafo, a relação entre realidade e fantasia, sobre enxergar apenas o que queremos ver. E ainda, sobre como o escritor pode participar ou intervir nos fatos.

A respeito dessa relação entre texto e imagem, escrevi também aqui no blog uma resenha do filme “Por falar de amor” (em inglês, Words and Pictures), no qual o ator Clive Owen interpreta um desiludido professor de literatura a ponto de perder o emprego, que decide desafiar a professora de arte e pintora, interpretada por Juliette Binoche, a travar uma disputa entre os alunos de ambos para ver quem consegue transmitir um significado maior: as palavras ou as imagens. Para ler essa resenha, clique aqui.

Enfim, a presença do sentido da visão, dos olhos e do olhar é uma constante em nossa cultura, há diversos exemplos, como o da tragédia grega Édipo rei, que culmina com Édipo furando os próprios olhos como punição por não ter conseguido driblar seu destino. Ou o mito da Medusa, uma mulher amaldiçoada da mitologia grega que transformava em pedra todo aquele que olhava diretamente para ela. Temos também o mito da caverna de Platão, que faz uma alegoria à visão além das aparências. O conto de E.T.A. Hoffmann, O homem de areia, uma narrativa fantástica sobre uma figura sinistra que roubava os olhos das crianças que não iam para a cama, história serviu de inspiração para muitas outras criações. Não somente a visão, como também a falta dela são temas presentes na literatura, como é o caso do Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. São temas que povoam nosso imaginário e se cristalizam em crenças populares como o mau-olhado ou olho gordo, que atribuem desgraças ao olhar invejoso de alguém, tradicionalmente associado à ideia de “secar com os olhos”. O assunto é inesgotável, mas não posso deixar de citar a sábia frase do nosso querido pequeno príncipe: “O essencial é invisível aos olhos”.

Neste momento, estou relendo Memórias póstumas de Bras Cubas, e não pude deixar de lembrar de uma das figuras metafóricas mais bonitas de nossa literatura, em Dom Casmurro, quando Bentinho se refere ao olhar de Capitu como “esses olhos de ressaca”. Cabe aqui uma anedota... Quando li o livro pela primeira vez, meu português era ainda muito incipiente, e eu muito nova para a magnitude da obra, o que me levou a pensar nos olhos da pessoa que está de ressaca pelo consumo excessivo de álcool: a visão dupla e embaçada, as olheiras em volta dos olhos. Mais tarde, pude captar o verdadeiro sentido da metáfora: o do olhar com a força do mar que arrasta tudo para si durante a ressaca. Referindo-se ainda ao olhar de Capitu, o agregado da família de Bentinho, José Dias, disse: “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, ou seja, um olhar malicioso, enigmático e traiçoeiro.

Quanto a outro assunto que também me fascina, o léxico, toda essa reflexão despertou minha vontade de compilar uma lista de adjetivos que qualificam o substantivo “olhar”, para convertê-la em uma nuvem de palavras. Eis o resultado:


Uma nuvem de palavras é uma representação gráfica da frequência e do valor de uma palavra numa determinada fonte de dados. Neste caso, não há uma relação de hierarquia, pois o objetivo foi simplesmente criar um material de consulta para usar naquele momento em que procuramos um adjetivo que qualifique com precisão o “olhar” que queremos descrever.

Por hoje é só! E, pra vocês, eu deixo apenas meu “olhar 43”.

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Como se diz em espanhol “ficar a ver navios"?



A expressão “ficar a ver navios” surgiu em Portugal e há quatro hipóteses que podem explicar sua origem. A primeira defende que, no tempo das grandes navegações e descobertas, muitos portugueses ficavam em Lisboa, num morro chamado Alto de Santa Catarina. Alguns autores dizem que se tratava de armadores esperando as caravelas que vinham de continentes além-mar, trazendo vários tesouros; outros dizem que eram sebastianistas que se recusavam a acreditar na morte de D. Sebastião, rei de Portugal, desaparecido na África, na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578, e, por isso, ficavam no Alto de Santa Catarina esperando pelo retorno do rei. O certo é que o D. Sebastião nunca retornou e que essas pessoas ficavam “a ver navios”, ou seja, ficavam frustradas por não verem seus desejos realizados.

A segunda hipótese defende que as mulheres ficavam observando os navios que chegavam aos portos para encontrarem seus maridos, muitas vezes sem sucesso. Daí a expressão: “ficou a ver navios”, ou seja, ficou esperando por algo que não aconteceu.

A terceira explicação revela a expressão "ficar a ver navios" no sentido de ser enganado por alguém. Em 1492 foi determinado que os judeus que não se convertessem ao catolicismo teriam de deixar a Espanha até ao fim de julho. Milhares então se deslocaram para Portugal. O casamento do rei D. Manuel com D. Isabel, filha dos Reis Católicos, fez com que aceitasse a exigência espanhola de expulsar todos os judeus que moravam em Portugal que não se tornassem católicos, num prazo que ia de janeiro a outubro de 1497. O rei Dom Manuel precisava dos judeus portugueses, pois representavam toda a classe média e a mão-de-obra, e eram também uma grande influência intelectual. Se Portugal os expulsasse como fez a Espanha, o país teria que enfrentar uma grande crise.

O rei de Portugal tinhas esperanças de que, retendo os judeus no país, seus descendentes se convertessem ao cristianismo como resultado da influência da cultura católica em Portugal. Para isso, tomou medidas extremas, chegando a ordenar a retirada de menores de 14 anos dos pais para que fossem convertidos. Posteriormente marcou uma data de expulsão na Páscoa. Quando chegou a data do embarque daqueles que não aceitaram o catolicismo, ele afirmou que não havia navios suficientes para os levar e ordenou um batismo em massa dos que estavam reunidos em Lisboa esperando o transporte para outros países. No dia marcado, estavam todos os judeus no porto esperando os navios que não vieram. Todos foram convertidos e batizados. O rei então declarou: não há mais judeus em Portugal, são todos cristãos. Muitos foram arrastados até a pia batismal pelas barbas ou pelos cabelos. Daí teria surgido a expressão: “ficaram a ver navios”, porque haviam sido enganados.

A quarta e última explicação para a expressão está relacionada à fuga da corte portuguesa para o Brasil, em 1807, quando ocorreu a primeira invasão de Portugal pelas tropas napoleónicas. Os  invasores pretendiam não somente ocupar o território português, mas também capturar a rainha e o príncipe-regente. Depois de muitas hesitações, a corte e a nata da sociedade lisboeta fugiram rumo ao Rio de Janeiro nos navios de uma esquadra anglo-portuguesa, levando consigo tudo o que tivesse valor. Ao entrar em Lisboa, as tropas francesas ainda conseguiram avistar os navios, por isso se diz que o marechal Junot ficou “a ver navios”, isto é, não conseguira alcançar seu propósito.

Em espanhol, a expressão mais próxima é “Quedarse (o dejar a alguien) con un palmo de narices”, isto é, ficar em ridículo ou frustrado naquilo que esperava conseguir. “Cuando me dijo que ya no quería salir conmigo, me quedé con un palmo de narices”. O termo palmo se refere a uma antiga medida de comprimento que aludia à distância entre o extremo dos dedos polegar e mindinho com a mão estendida. Certamente a expressão está relacionada a esta forma de deboche, que consiste em encostar o dedo polegar na ponta do nariz, estender a mão e mover os dedos. De qualquer modo, a expressão pode muito bem referir-se aos enormes e ridículos narizes postiços usados por aqueles que representavam personagens engraçados ou bobos no teatro, os mesmos que hoje são usados pelos palhaços de circo.


Fontes:

Diccionario de dichos y frases hechas, de Alberto Buitrago (1995).

Etimología. ¿Por qué se dice quedarse con un palmo de narices?

https://spanish.stackexchange.com/questions/19640/por-qu%C3%A9-se-dice-quedarse-con-un-palmo-de-narices#

Significados. Expressões populares.

https://www.significados.com.br/ficar-a-ver-navios/



quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Resenha do livro A insustentável leveza do ser

Queridos leitores,

Estou passando por aqui para deixar minhas impressões sobre a leitura que terminei hoje cedo, A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca, edição da Companhia das Letras. Gente, que livro!!!

Esta leitura sem dúvida me impactou. Tanto que, mesmo tendo muita coisa para fazer, resolvi vir aqui rapidinho para registrar meus pensamentos antes que se esvaiam como nuvens ao vento (rimou!).

Primeiramente, agradeço à minha tia, leitora refinada e aguçada que já me recomendou leituras incríveis, como Los que vivimos (We the living), de Ayn Rand e As vinhas da ira (The Grapes of Wrath) de John Steinbeck, dois livros da vida. O primeiro tem resenha em espanhol aqui no blog; o segundo, creio que não. Aliás, decobri em minha tia uma cúmplice e parceira para compartilhar sugestões e impressões, temos muita afinidade quando o assunto e leitura. Estou aprendendo muito com ela e estou desfrutando muito dessa troca!

Mas vamos ao livro.

Eu tinha certo "ranço" (destesto essa palavra boba que virou estampa de camiseta) em relação a esse livro. Mas acho que neste caso o substantivo se aplica bem, porque se tratava de uma ojeriza sem fundamento, simplesmente porque ouvi comentários negativos sobre a relação abusiva e tóxica que seria romantizada nesse livro, algo nesse estilo.

Comentário muito superficial que acabou me contaminando, porque, embora as relações amorosas deste romance não sejam as mais saudáveis ou românticas do mundo, elas servem para levantar questões humanas muito mais profundas. Se fôssemos resumir de forma trivial o enredo do livro, poderíamos dizer que se trata da história de dois casais que vivem relações conflituosas e cujos destinos se entrelaçam. Mas isso seria reduzi-lo ao óbvio, chover no molhado. O que realmente torna esta obra especial, além da escrita e do estilo primorosos do autor, é a reflexão que suscita.

Tanto os personagens como as relações amorosas servem mais como excusa ou pano de fundo para uma ponderação mais profunda sobre diversos aspectos, como a efemeridade da vida, o acaso, a forma como as relações se estabelecem e se sustentam, e outra questões mais pragmáticas de natureza social, como a influência dos pais no comportamento dos filhos, a interferência da profissão, da cultura e da política no caráter do indivíduo.

A história começa com uma reflexão sobre o mito do eterno retorno de Nietzsche, nessa introdução, o autor já traz a contraposição ente o peso e a leveza. O peso se refere à ideia de eternidade através de situações que se repetem ad eternum; e a leveza, por sua vez, diz respeito àquilo que só se vive uma vez e que, portanto, se esvaece, é efêmero.

A seguir, ele aborda o peso e a leveza de nossas decisões. Ele questiona se existe de fato um destino, ou se ele serviria de pretexto para justificar nossas escolhas. O peso das nossas decisões está no fato de que o tempo todo vivemos uma situação pela primeira vez. Somos jogados ao palco para atuar sem ter ensaiado, como podemos saber se estamos agindo corretamente, tomando a decisão correta se tudo é inédito?

Para contestar a ideia de peso como algo negativo (a responsabilidade sobre os nossos hombros), e a ideia de leveza como algo positivo (a nossa liberdade), nada melhor que reproduzir um fragmento do livro que sintetiza bem essa noção:

Mas será mesmo atroz o peso e bela a leveza? O mais pesado dos fardos nos esmaga, verga-nos, comprime-nos contra o chão. Na poesia amorosa de todos os séculos, porém, a mulher deseja receber o fardo do corpo masculino. O mais pesado dos fardos é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da realização vital mais intensa. Quanto mais pesado é o fardo, mais próxima da terra está nossa vida, e mais real e verdadeira ela é.

Em compensação, a ausência total de fardo leva o ser humano a se tornar mais leve do que o ar, leva-o a voar, a se distanciar da terra, do ser terrestre, a se tornar semirreal, e leva seus movimentos a ser tão livres como insignificantes. O que escolher, então? O peso ou a leveza?

Mais adiante, o autor nos apresenta o pensamento alemão que faz parte de uma sonata de Beethoven, o "Muß es sein?" (tem que ser assim?), "Es muß sein!" (tem que ser assim!) para abordar a questão da missão e do destino do indivíduo. Estamos pré-destinados a algo? Temos uma missão? Há um sentido em nossa existência ou tudo não passa de obra do acaso, de uma série de coincidências? Se pudêssemos viver novamente, faríamos igual?

En quanto ao contexto, a trama se passa entre as cidades de Praga e Zurique e aborda a primavera de Praga, a invasão russa da República Tcheca, a invasão do Camboja pelos vietnamitas para derrubar o governo genocida de Pol Pot. O autor manifesta abertamente sua resistência ao totalitarismo do regime comunista. 

Os personagens são moldados pelo contexto familiar, social e político em que vivem. Isso fica evidente na perseguição sofrida por Tomas após a publicação de seu artigo contra a ocupação russa num jornal, que o obriga a abandonar a medicina; na insegurança de Teresa em relação ao próprio corpo como resultado do comportamento grotesco e debochado da mãe; na frivolidade de Sabina e no idealismo e ânsia de liberdade de Franz.

Outro aspecto interessante do livro são as digressões literárias, numa de suas frases enquanto personagem que teoriza a literatura, o narrador diz: “Os personagens de meu romance são minhas próprias possibilidades, que não foram realizadas”, assim como em outros fragmentos em que o autor intervém em primeira pessoa para falar da literatura ou da obra, deixando a ficção à mostra, sem melindres.

É curioso também o motivo que levou Tereza a se interessar por Tomas: ele estava lendo um livro no café onde ela trabalhava.

E mais uma coisa: havia um livro aberto sobre a mesa. Naquele café, ninguém jamais abrira um livro sobre a mesa. Para Tereza, o livro era o sinal de reconhecimento de uma irmandade secreta. De fato, contra o mundo de grosseria que a cercava, tinha uma só arma: os livros que tomava emprestados na biblioteca municipal; sobretudo os romances: lia-os em quantidade, de Fielding a Thomas Mann. Eles lhe ofereciam uma chance de evasão imaginária, arrancando-a de uma vida que não lhe trazia nenhuma satisfação, mas tinham também para ela um sentido como objetos: gostava de passear na rua com livros debaixo do braço. Eram para ela o que a elegante bengala era para um dândi do século passado. Eles a distinguiam das outras.

Também merece destaque a crítica de Kundera ao movimento kitsch na arte e inclusive na política. O termo kitsch é um empréstimo do alemão e, quando o assunto é estética, serve para designar a arte que se caracteriza pela vulgaridade, banalidade, sentimentalismo, breguice, destinados ao consumo de massa. Vejamos um fragmento que fala a respeito disso:

Esta é uma palavra alemã que apareceu em meados do sentimental século xix e que em seguida se espalhou por todas as línguas. Mas o uso frequente do termo apagou seu valor metafísico original: o kitsch, em essência, é a negação absoluta da merda; tanto no sentido literal como no sentido figurado: o kitsch exclui de seu campo visual tudo o que a existência humana tem de essencialmente inaceitável.

A primeira revolta interior de Sabina contra o comunismo não tinha um caráter ético, mas estético. O que lhe repugnava não era tanto a feiura do mundo comunista (os castelos convertidos em estábulos), mas a máscara de beleza com que ele se cobrira, isto é, o kitsch comunista. O modelo desse kitsch era a chamada festa do Primeiro de Maio.

E sobre o kitsch na política. Quem já não viu esta cena?

Ninguém sabe disso melhor do que os políticos. Assim que percebem uma máquina fotográfica por perto, correm até a primeira criança que veem para levantá-la nos braços e beijá-la na face. O kitsch é o ideal estético de todos os políticos, de todos os movimentos políticos. 

Todas essas reflexões e críticas são muito interessantes e enriquecem a leitura, mas o clímax, isto é, o ponto alto da narrativa, em minha opinião, é o capítulo final "O sorriso de Kariênin". Nesse capítulo há uma quebra de expectativa e acontece algo muito tocante, que fará seu coração se apertar, sua garganta dar um nó e seus olhos se encherem de lágrimas, a menos que você tenha um coração empedernido.

Talvez ao ler esse capítulo você se pergunte: "Mas isso não seria uma manifestação kitsch de sentimentalismo?". Eu diria que não, porque o sentimentalismo kitsch se esvazia de sentido pelo seu caráter repetitivo, imitativo, trata-se de uma emolução de sofrimento, enquanto que neste último capítulo o sofrimento é autêntico, é verossímil, conseguimos nos colocar no lugar dos personagens e sentir a sua dor.

Se você já leu, deixe seus comentários e, se ainda não leu, espero ter despertado seu interesse.

Boas leituras e até a próxima!

terça-feira, 9 de maio de 2023

Desabafo!

 

De bafo, do Latim BAFFA, “hálito, ar que sai pela boca”, de uma onomatopeia BAF, com sentido de escárnio.

Des + abafar = S.M. Ação ou efeito de desabafar. Desafogo, alívio, expansão. Exteriorização de sentimentos penosos e reprimidos.

Hoje acordei com vontade de exteriorizar meus pensamentos sobre um episódio do qual participei, ontem, num grupo de tradutores iniciantes.

Resumindo a história: Uma moça lançou uma pergunta para os mais experientes “Como sair da CLT em pouco tempo dedicando-se à tradução?” Ela disse que gostaria de fazer disto uma renda, ainda que não fosse altíssima, apenas para poder trabalhar em home-office.

Como tradutora que conjuga há mais de 15 anos o trabalho CLT com o freelance — e há quase 10 anos em home-office —, senti-me na obrigação de orientá-la a não largar o emprego CLT, alegando que um contrato desse tipo oferece muitos benefícios, entre os quais um salário fixo, férias remuneradas, 13.º salário, vale-alimentação e, muitas vezes, plano de saúde. Aconselhei-a a manter o emprego CLT até conseguir se estabelecer na carreira de tradutora.

Além disso, eu disse que o trabalho em home-office ou como autônomo não é sinônimo de liberdade, falo por minha própria experiência. Antes o contrário, o trabalho como autônomo é sinônimo de pressão, uma vez que você assume a total responsabilidade por seu desempenho e rendimento financeiro. Muitas vezes não pode se dar o luxo de recusar um trabalho e precisa acordar cedo, trabalhar até tarde, nos fins de semana e feriados. Falo por mim, preciso cumprir horários, não posso sair à hora que quero. Preciso manter a disciplina e a produtividade. Já aconteceu de ter de interromper as férias com a família e ficar no hotel para fazer um teste de tradução, aliás, foi assim que consegui minha primeira oportunidade na tradução literária.

Até aí tudo bem. O que me deixou chateada ou surpresa, não sei dizer bem ao certo... foi que um outro membro do grupo se manifestou dizendo que, para quem está tentando começar na área, ver minhas mensagens foi muito desanimador, que parece que há mais frustrações do que realizações, que faz repensar se vale a pena começar nessa área ou tentar outra coisa, que parece um alerta para a pessoa não arriscar em algo que pode ser pior...

Em nenhum momento foi minha intenção desalentar alguém, tampouco fui rude ou irônica, só falei a verdade.

Após várias manifestações de outros membros do grupo apoiando o amigo ou concordando com as dificuldades da profissão, o moderador do grupo se manifestou e disse que é normal falar das dificuldades, pois é isso que gera dúvidas e aflige os profissionais, que dificilmente alguém iria ao grupo para dizer que a semana foi maravilhosa e que traduziu não sei quantos milhares de palavras e faturou não sei quantos milhares de dinheiros (não exatamente com essas palavras, é claro).

Nesse momento, sim, fui debochada e disse que se alguém fizesse esse tipo de comentário seria cancelado por “ostentação”.

Depois apareceram comentários dizendo que essa precariedade toda se deve à falta de regulamentação. Fiquei quieta, não disse mais nada.

Talvez esperassem que eu dissesse: “É isso aí, amiga! Larga tudo e se joga de cabeça! Vai na fé! Tamo junto!”.

Acho que o grupo foi bloqueado para mensagens, pois há uma nota que diz que não é possível fazer nenhum comentário.

Por isso venho aqui fazer meu desabafo:

Se trabalho não exigisse esforço e sacrifício, não se chamaria “trabalho”.

Como diz Ortega y Gasset:

“É imoral pretender que uma coisa desejada se realize magicamente, simplesmente porque a desejamos. Só é moral o desejo acompanhado da severa vontade de prover os meios da sua execução.”

Muitos culpam a precarização da profissão ao fato de não ser regulamentada, mas se esquecem de que regulamentação não serve apenas para garantir direitos ou reconhecimento. O principal papel da regulamentação é controlar e fiscalizar, estabelecer normas, exigir qualificação profissional, diplomas, certificações, afiliações e contribuições sindicais, registro e emissão de notas fiscais, normas ISO, códigos de ética, etc.

Na prática, é o mercado que dita as regras do jogo, e ele feroz e competitivo, para profissões regulamentadas ou não. E quanto à qualidade do trabalho, também, é o mercado que separa o joio do trigo, o eficiente do ineficiente. Há espaço para todos, no entanto, para conquistar tarifas mais altas, precisamos acrescentar valor ao nosso trabalho, investir em formação e ferramentas, e fazer, sim, sacrifícios.

”Romantizar” ou “idealizar” não torna as coisas mais fáceis, só aumenta a frustração ao depararmos com a realidade. Ser realista não significa ser pessimista.

Para finalizar, quero deixar bem claro que não trocaria minha profissão por outra, sinto-me satisfeita e realizada traduzindo. E, para mostrar que não sou uma pessoa pessimista, falarei também dos aspectos positivos de trabalhar como tradutor autônomo (freelance) em home-office. Você tem mais liberdade, controle, flexibilidade e autonomia sobre sua rotina de trabalho; não precisa perder horas no trânsito; tem mais privacidade para trabalhar com sua roupa favorita, ouvindo sua música favorita; pode encaixar algumas tarefas domésticas nas horas vagas; estar perto dos filhos e pets, entre outras.

sexta-feira, 5 de maio de 2023

Uma reflexão sintática

Bom dia, meus queridos leitores! Se é que sobrou algum depois de tanto tempo da última publicação... Bom, também não faz tanto tempo assim. A última publicação foi no dia 3 de fevereiro deste ano, três meses, até que não é tanto para quem não tem tempo nem de se coçar, hiperbolicamente falando.

Mas vamos ao que interessa. Hoje não vou começar com aquele lengalenga de que eu tive um insight (mas que eu tive, isso eu tive). Estava revisando a tradução que fiz de um artigo acadêmico, quando observei pela enésima vez um fenômeno sintático que chama muito minha atenção. Trata-se de uma mudança de colocação que ocorre no espanhol em relação ao português.

Vamos por partes:

— Todo mundo sabe o que é uma oração subordinada adjetiva restritiva? 


Refrescando a memória... uma oração subordinada adjetiva restritiva é aquela que traz uma informação específica sobre o substantivo ao qual se refere. Na prática, exerce o papel de adjunto adnominal porque acompanha, qualifica e especifica o substantivo ao qual se refere.

Exemplo: Os livros que falam de amor são pouco realistas.

Estou afirmando que todos os livros são pouco realistas? Não, estou especificando. Somente os livros que falam de amor. Por isso é restritiva, porque restringe essa qualificação a um elemento ou a um grupo.

Esse tipo de orações são introduzidas por pronomes relativos (que, quem, onde, qual, quanto, cujo, etc.). Neste caso, vamos falar das introduzidas pelo pronome relativo “que”. Mais especificamente daquelas que indicam uma ação praticada por um sujeito sobre o objeto ao qual se refere.

Calma, gente. Vamos ver na prática.

O bolo que o confeiteiro fez ficou muito bom.

O brinquedo que o pai comprou fez muito sucesso.

O documento que o funcionário assinou é sua contratação.

O gol que o Ronaldo marcou decidiu o jogo.

 

Assim não parece tão complicado, não é mesmo? A oração subordinada adjetiva restritiva está formada por um sujeito que pratica uma ação que recai sobre o objeto ao qual se refere. Até aí tudo bem?

Agora vamos ver essas mesmas frases em espanhol:

El pastel que hizo el pastelero ha quedado muy rico.

El juguete que compró el padre tuvo mucho éxito.

El documento que firmó el empleado es su contratación.

El gol que marcó Messi decidió el partido. (tradução domesticadora, trocou Ronaldo por Messi... hehehe)

Essa é a forma habitual de construir tais frases em espanhol. Perceberam a diferença? Na construção em espanhol o verbo antecede o sujeito que o pratica.

Vejamos uma construção na voz passiva:

O muro que foi construído pelo pedreiro caiu.

El muro que construyó el albañil se cayó.

 

Em espanhol, ao menos no espanhol europeu, é preferível o uso da voz ativa, soa mais natural.

Mas a questão não é essa, a questão é que, como não estamos habituados a ver o verbo antes do sujeito nesse tipo de construção, podemos errar na interpretação e traduzir de forma errada para o português.

Agora, sim, chegamos ao ponto:

“El oso que mató el cazador”

Se analisarmos essa construção de forma isolada, sem contexto, fica difícil identificar o assassino. Quem matou quem? Não é mesmo?

Foi o urso que matou o caçador ou o caçador que matou o urso?

Resposta: Foi o caçador que matou o urso.

Como sei disso?

Porque do contrário a construção correta seria:

El oso que mato al cazador

Lembram que no espanhol é obrigatório o uso da preposição “a” antes de objeto direto de pessoa? (“al” é a contração da preposição “a” com o artigo “el”).

Logo, se o caçador é o objeto, é ele quem sofre a ação. Neste caso, quem se deu bem foi o urso.

Em português não teríamos essa ambiguidade porque diríamos de outra forma, provavelmente usando a voz passiva. “O caçador que foi morto pelo urso”. Uma construção bem mais clara, diga-se de passagem.

Claro que geralmente o contexto desfaz a ambiguidade, se eu dissesse “El oso que mató el cazador es un animal en extinción”, o problema estaria resolvido. A questão é que num momento de distração, após muitas horas de trabalho, podemos cometer um deslize, por isso devemos ficar atentos a esse tipo de construção.

Vejamos outro exemplo:

El león que mató la gacela.

 

Embora nossa intuição nos diga que foi o leão que matou a gazela, porque ela é mais fraca, não temos como fazer essa afirmação com 100% de certeza.

E se a frase fosse:

El león que mató el tigre.

 

E agora? Os dois são fortões...

Nesse caso, em espanhol, usamos a preposição “a” diante do objeto direto (ainda que não seja de pessoa) para desfazer a ambiguidade:

El león que mató al tigre.

 

Novamente, no português não teríamos esse tipo de problema porque certamente usaríamos uma construção passiva do tipo “O tigre que foi morto pelo leão”.

Interessante, não é mesmo?




sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Como viajar sem sair do lugar?

Olá, quanto tempo!

Estou passando por aqui rapidinho (P.S.: na verdade foram mais quase 3 horas), porque eu estava almoçando e de repente deu aquele negócio que surge inesperadamente... Soluço? Não, esse tal de “insight” que o pessoal do RH tanto gosta, ou seja, uma percepção repentina: acendeu a lampadinha! Em outras palavras "explodiu meu mindset"!

E, como insight e inspiração são coisas que andam escasseando em minha cachola, resolvi aproveitar o horário de almoço para compartilhar com quem possa se interessar.

Sei que o título parece coisa de coach, “Como viajar sem sair do lugar?”, mas é preciso valer-se de alguns artifícios para atrair a atenção do leitor distraído.

Quem é que não gostaria de viajar sem sair do lugar?

Esses dias, enquanto navegava pelo Instagram, deparei com uma postagem da tradutora Débora Fleck, em que ela falava sobre o livro que traduziu para a Editora Antofágica, “Viagem ao redor do meu quarto”, de Xavier de Maistre. Como sou uma bibliófila compulsiva, já fui logo xeretar a apresentação no site da Amazon.

Eis um fragmento dessa apresentação:

Um militar condenado à reclusão após matar um oponente de duelo escreve estas memórias, que figuram entre as obras mais queridas por Machado de Assis. Acostumado aos combates e deslocamentos, o oficial do exército Xavier de Maistre se vê confinado em seu quarto – e enxerga nessa pena uma oportunidade para mergulhar a pena da galhofa na tinta da melancolia. Mestre das linhas tortas, digressões e ziguezagues, De Maistre nos apresenta uma nova maneira de viajar: por meio de uma incursão no mundo das letras. Para cada dia preso em seu quarto, um capítulo. Assim é construída esta obra, que transita entre a narrativa memorialista, a autobiografia e o relato de viagem. Escrita em 1793, inaugura uma febre de narrativas que percorrem mundos sem sair do lugar. [...]”

Primeiro, “uma obra que figura entre as mais queridas por Machado de Assis”; segundo, “inaugura uma febre de narrativas que percorrem mundos sem sair do lugar”, precisa mais do que isso para despertar a atenção? Não só comprei o livro, como deixei-o furar a fila de minha lista de leitura, indo direto para o topo.

Justo ontem terminei de ler Doutor Jivago, de Boris Pasternak, e essa história de percorrer mundos sem sair do lugar veio a calhar, foi o gatilho que disparou o insight (muito clichê, admito). Explico: Quando comecei a ler Doutor Jivago, fiquei mais perdida que cachorro em dia de mudança, ou que cego em tiroteio ou, como dizem os espanhóis, perdido como un turco en la neblinaAliás, se quiser saber a origem dessa expressão, que na verdade é uma deturpação, leia este texto.

Desculpem a divagação, mas quem me conhece já sabe que eu divagueio mesmo, brincadeira... eu divago... divago... jivago

Então, retomando o fio da meada, fiquei perdida em meio a tantos nomes, sobrenomes e apelidos russos, só o protagonista, para dar um exemplo, aparece sob o nome de Doutor Jivago ou Iúri Andréievitch Jivago ou Iúrotchka, casado com Antonina Aleksándrovna Gromeko ou Tônia, ou Tonka, filha de Nikolai Aleksándrovitch Gromeko. Iúri se apaixona por Larisa Fiódorovna Guichard ou Antípova ou Lara, que por sua vez é casada com Pável Pávlovich Antípov ou Pacha ou Strélnikow, e por aí vai...

Para conseguir me localizar, li uma excelente resenha da tradutora de russo Érika Batista, Como nossos pais. Ela, aliás, deixou como bônus um esquema dos personagens, pois em suas próprias palavras: “Pela primeira vez na vida, me vi obrigada a fazer uma lista de personagens para não me perder numa leitura (...)”.

A seguir, assisti — mesmo contra meus princípios —, ao filme Doutor Jivago de 1965, dirigido por David Lean e protagonizado por Omar Sharif (Iúri Jivago) e Julie Christie (Lara Antípova). Só depois disso voltei para o livro, já com as ideias mais claras.

Para aqueles que quiserem saber mais a respeito do livro, recomendo ler a resenha da Érika, que fez uma ótima análise, muito completa. Meu objetivo aqui é defender a ideia de que é possível viajar através dos livros.

Quando terminei de ler Doutor Jivago fiquei com a impressão de ter visitado Moscou e de ter embarcado na longa viagem de trem junto com Iúri, Tônia, o pai dela e o filho do casal, rumo a Varikino quando a situação apertou após a revolução. De admirar as paisagens cobertas de neve, os montes Urais, os bosques de tília, tive a sensação de sentir o perfume adocicado das tílias, que, segundo minhas pesquisas, lembra jasmim com mel. Além disso, assisti a alguns vídeos sobre a guerra civil russa de 1917 para entender melhor o contexto histórico e social, Também cheguei ao capítulo “Pasternak e a revolução” do livro Por que ler os clássicos, de Ítalo Calvino.

Tílias (Fonte: Revista Jardim)
Tílias (Fonte: Revista Jardim)

Na versão cinematográfica, esta é a dacha rural, a leste dos Montes Urais,
onde o Iúri Andreievich cresceu em Varykino

Parafraseando Calvino, um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Quando você embarca num livro desses, você viaja para outra época, para outro lugar, estabelece conexões com outros textos, com outros formatos (filmes, documentários, músicas, obras de arte, etc.), acontecimentos históricos e muito mais, você viaja para dentro de si mesmo ao rememorar passagens de sua própria vida. E como eu sempre digo um livro chama outro livro, que chama outro...

Se um romance histórico já conseguiu me arrancar do sofá, quem dirá um relato de viagem mesmo, algo assim como “Uma passagem para a Índia” de E.M. Forster, que aliás já virou filme também e adivinhe quem foi o diretor? Nada mais e nada menos que David Lean, o mesmo diretor de Doutor Jivago. Acho que vai ter mais um furão de fila por aqui... Ou quem sabe “A volta ao mundo em 80 dias”, de Júlio Verne? Sete anos no Tibet?

Para você que aguentou até aqui, eu desejo boas leituras, ou melhor, uma boa-viagem!

Aqui estão algumas listas de livros de viagem:

17 livros de viagem para ver o mundo sem sairde casa, por Betina Neves.

Além das paredes conhecidas: 10 livros de viagem, por Luiggi Ricciardi.