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sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Como viajar sem sair do lugar?

Olá, quanto tempo!

Estou passando por aqui rapidinho (P.S.: na verdade foram mais quase 3 horas), porque eu estava almoçando e de repente deu aquele negócio que surge inesperadamente... Soluço? Não, esse tal de “insight” que o pessoal do RH tanto gosta, ou seja, uma percepção repentina: acendeu a lampadinha! Em outras palavras "explodiu meu mindset"!

E, como insight e inspiração são coisas que andam escasseando em minha cachola, resolvi aproveitar o horário de almoço para compartilhar com quem possa se interessar.

Sei que o título parece coisa de coach, “Como viajar sem sair do lugar?”, mas é preciso valer-se de alguns artifícios para atrair a atenção do leitor distraído.

Quem é que não gostaria de viajar sem sair do lugar?

Esses dias, enquanto navegava pelo Instagram, deparei com uma postagem da tradutora Débora Fleck, em que ela falava sobre o livro que traduziu para a Editora Antofágica, “Viagem ao redor do meu quarto”, de Xavier de Maistre. Como sou uma bibliófila compulsiva, já fui logo xeretar a apresentação no site da Amazon.

Eis um fragmento dessa apresentação:

Um militar condenado à reclusão após matar um oponente de duelo escreve estas memórias, que figuram entre as obras mais queridas por Machado de Assis. Acostumado aos combates e deslocamentos, o oficial do exército Xavier de Maistre se vê confinado em seu quarto – e enxerga nessa pena uma oportunidade para mergulhar a pena da galhofa na tinta da melancolia. Mestre das linhas tortas, digressões e ziguezagues, De Maistre nos apresenta uma nova maneira de viajar: por meio de uma incursão no mundo das letras. Para cada dia preso em seu quarto, um capítulo. Assim é construída esta obra, que transita entre a narrativa memorialista, a autobiografia e o relato de viagem. Escrita em 1793, inaugura uma febre de narrativas que percorrem mundos sem sair do lugar. [...]”

Primeiro, “uma obra que figura entre as mais queridas por Machado de Assis”; segundo, “inaugura uma febre de narrativas que percorrem mundos sem sair do lugar”, precisa mais do que isso para despertar a atenção? Não só comprei o livro, como deixei-o furar a fila de minha lista de leitura, indo direto para o topo.

Justo ontem terminei de ler Doutor Jivago, de Boris Pasternak, e essa história de percorrer mundos sem sair do lugar veio a calhar, foi o gatilho que disparou o insight (muito clichê, admito). Explico: Quando comecei a ler Doutor Jivago, fiquei mais perdida que cachorro em dia de mudança, ou que cego em tiroteio ou, como dizem os espanhóis, perdido como un turco en la neblinaAliás, se quiser saber a origem dessa expressão, que na verdade é uma deturpação, leia este texto.

Desculpem a divagação, mas quem me conhece já sabe que eu divagueio mesmo, brincadeira... eu divago... divago... jivago

Então, retomando o fio da meada, fiquei perdida em meio a tantos nomes, sobrenomes e apelidos russos, só o protagonista, para dar um exemplo, aparece sob o nome de Doutor Jivago ou Iúri Andréievitch Jivago ou Iúrotchka, casado com Antonina Aleksándrovna Gromeko ou Tônia, ou Tonka, filha de Nikolai Aleksándrovitch Gromeko. Iúri se apaixona por Larisa Fiódorovna Guichard ou Antípova ou Lara, que por sua vez é casada com Pável Pávlovich Antípov ou Pacha ou Strélnikow, e por aí vai...

Para conseguir me localizar, li uma excelente resenha da tradutora de russo Érika Batista, Como nossos pais. Ela, aliás, deixou como bônus um esquema dos personagens, pois em suas próprias palavras: “Pela primeira vez na vida, me vi obrigada a fazer uma lista de personagens para não me perder numa leitura (...)”.

A seguir, assisti — mesmo contra meus princípios —, ao filme Doutor Jivago de 1965, dirigido por David Lean e protagonizado por Omar Sharif (Iúri Jivago) e Julie Christie (Lara Antípova). Só depois disso voltei para o livro, já com as ideias mais claras.

Para aqueles que quiserem saber mais a respeito do livro, recomendo ler a resenha da Érika, que fez uma ótima análise, muito completa. Meu objetivo aqui é defender a ideia de que é possível viajar através dos livros.

Quando terminei de ler Doutor Jivago fiquei com a impressão de ter visitado Moscou e de ter embarcado na longa viagem de trem junto com Iúri, Tônia, o pai dela e o filho do casal, rumo a Varikino quando a situação apertou após a revolução. De admirar as paisagens cobertas de neve, os montes Urais, os bosques de tília, tive a sensação de sentir o perfume adocicado das tílias, que, segundo minhas pesquisas, lembra jasmim com mel. Além disso, assisti a alguns vídeos sobre a guerra civil russa de 1917 para entender melhor o contexto histórico e social, Também cheguei ao capítulo “Pasternak e a revolução” do livro Por que ler os clássicos, de Ítalo Calvino.

Tílias (Fonte: Revista Jardim)
Tílias (Fonte: Revista Jardim)

Na versão cinematográfica, esta é a dacha rural, a leste dos Montes Urais,
onde o Iúri Andreievich cresceu em Varykino

Parafraseando Calvino, um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. Quando você embarca num livro desses, você viaja para outra época, para outro lugar, estabelece conexões com outros textos, com outros formatos (filmes, documentários, músicas, obras de arte, etc.), acontecimentos históricos e muito mais, você viaja para dentro de si mesmo ao rememorar passagens de sua própria vida. E como eu sempre digo um livro chama outro livro, que chama outro...

Se um romance histórico já conseguiu me arrancar do sofá, quem dirá um relato de viagem mesmo, algo assim como “Uma passagem para a Índia” de E.M. Forster, que aliás já virou filme também e adivinhe quem foi o diretor? Nada mais e nada menos que David Lean, o mesmo diretor de Doutor Jivago. Acho que vai ter mais um furão de fila por aqui... Ou quem sabe “A volta ao mundo em 80 dias”, de Júlio Verne? Sete anos no Tibet?

Para você que aguentou até aqui, eu desejo boas leituras, ou melhor, uma boa-viagem!

Aqui estão algumas listas de livros de viagem:

17 livros de viagem para ver o mundo sem sairde casa, por Betina Neves.

Além das paredes conhecidas: 10 livros de viagem, por Luiggi Ricciardi.