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sexta-feira, 5 de junho de 2020

Teoria x prática

Esses dias presenciei algumas discussões em grupos de tradutores a respeito da falsa dicotomia entre a teoria e a prática, desculpem o chavão, como se ambas não fossem faces de uma mesma moeda. De um lado, os que defendiam a necessidade da educação formal, inclusive alguns que assumiam sofrer da síndrome do "eterno aprendiz", acumulando diplomas de graduação e pós-graduação, mas com pouca experiência prática; do outro aqueles que enfatizavam a importância da prática em detrimento da teoria.

Desde pequenos aprendemos as coisas do mundo através de duas visões, a teórica e a prática, assimilamos pela observação e pelas explicações que recebemos. Ouvimos repetidamente que precisamos comer para crescer e ficar fortes, mas só conseguimos entender a relação entre a comida e o crescimento, mais adiante, quando aprendemos sobre nosso organismo e sua necessidade contínua de energia para funcionar adequadamente. Só então compreendemos que nosso corpo, como uma máquina, processa os alimentos e os transforma em energia. É, nossa mãe estava certa, precisamos comer para ficar fortes.

Assim, a fundamentação teórica serve para confirmar ou refutar nossas observações, e mais, para ampliar nossa perspectiva, fazendo-nos enxergar além do óbvio.

Em geral, quando decidimos ser tradutores, baseamo-nos em nosso conhecimento de ao menos um par de línguas. Achamos que isso é o suficiente para transpor uma mensagem de uma cultura para outra. Somos jovens, conhecemos mais de uma língua, mais de uma cultura, somos diferenciados. Sentimo-nos no comando, somos ousados, não temos medo de arriscar, agimos por intuição e refutamos a teoria em nome da prática. Acreditamos que temos um dom, um talento natural.

Mas aí vem a frustração quando encaramos o trabalho real e percebemos que não estamos preparados para lidar com tantas exigências. Nosso "talento natural" não dá conta de resolver os obstáculos que se apresentam... Hesitamos diante de tantas dúvidas, sentimo-nos inseguros, e é então que "a ficha cai": precisamos de algo a mais. Algo que nos permita tomar decisões firmes, que nos permita defender nossas escolhas com segurança. É aí que entra a fundamentação à qual nos referimos mais acima.  Queremos dominar nosso ofício, conhecê-lo a fundo, fazer nosso trabalho da melhor forma. Buscamos o desenvolvimento pessoal e profissional, o respaldo para construir uma carreira sólida.

Não queremos nivelar-nos por baixo, queremos a excelência. A nossa postura muda: admitimos que não conhecemos da missa um terço.

Não vou entrar em detalhes sobre minha formação, porque daria uma novela. Resumindo: levei mais de 17 anos para me formar, mas não me envergonho disso, pelo contrário, fui persistente, nadei contra a corrente. Estudei três anos completos de Letras Língua Portuguesa, não me formei. Anos mais tarde, formei-me em Letras Língua Espanhola, na UFSC. Depois disso, quando decidi dedicar-me à tradução, cursei uma pós-graduação em Tradução de Espanhol. No total, foram 9 anos de estudo. Mas não parei por aí, sempre que posso, faço algum curso, leio algum livro da área, porque sei que ainda tenho muito que aprender.

Se o estudo fez alguma diferença? Sim, fez muita diferença. Acreditem. Da água para o vinho. Falando nisso, dizem que tradutor é como o vinho, melhora com os anos, mas é bom lembrar que o vinho, quando se corrói, vira vinagre... Ou seja, envelhecer sim, mas com leveza, mantendo-nos ativos e buscando evoluir.

Quais seriam os conhecimentos teóricos necessários para o tradutor?

Acredito que o conhecimento profundo das línguas fonte e alvo é fundamental. O tradutor precisa conhecer a fundo as normas e padrões que regem as línguas com as quais trabalha, e ainda, suas idiossincrasias, conhecer a norma culta, mas também as variações, os regionalismos, as expressões idiomáticas, jargões, tecnicismos, gíria, quanto mais amplo seu conhecimento, melhor.  Afora a bagagem cultural. É importante ter algum conhecimento da história, geografia, manifestações culturais e costumes dos países em questão.  

Também é recomendável conhecer um pouco da teoria da tradução, as diferentes vertentes, os movimentos filosóficos por trás dessas vertentes, as tendências e os questionamentos. E conhecer, principalmente, as técnicas e estratégias de tradução.

Não acho que seja essencial, mas, sem dúvida, é enriquecedor conhecer um pouco da história da tradução: saber  como surgiram os primeiros tradutores, as primeiras escolas, o que traduziam, como o faziam, a evolução e a formalização do ofício e seu papel na sociedade, entre outros.

Não se trata de acumular conhecimento. É preciso saber aplicá-lo, servir-se dele no dia a dia. Para complementar a teoria, é aconselhável buscar oficinas ou estágios que nos permitam colocar as mãos na massa para avaliar nossas fortalezas e fraquezas.

Uma vez que tenhamos um conhecimento mínimo da tradução, precisaremos especializar-nos em alguma modalidade: tradução técnica, tradução editorial, tradução audiovisual, localização de softwares e jogos, interpretação, etc. Sem falar que cada uma dessas modalidades, se desdobra em outras especialidades.

Deixando de lado a teoria e a prática, há outro aspecto muito importante que não devemos negligenciar: o mercado. Precisamos entender como funciona o mercado da tradução, conhecer os envolvidos e as regras do jogo. E, num cenário competitivo como o mercado da tradução, é preciso dominar algumas tecnologias, como as ferramentas de auxílio à tradução, assim como cultivar nossa rede de relacionamentos através das redes sociais.

É de fato um processo trabalhoso, mas não existe reconhecimento sem esforço. Valendo-me do bordão maromba: no pain, no gain (literalmente, sem dor, sem ganho).

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