Por que a tradução literária é tão desafiadora?
Primeiramente, é preciso distinguir a tradução editorial da tradução
literária. Enquanto a primeira se refere à tradução de livros em geral, das
mais variadas áreas, como religião, arquitetura, culinária, etc.; a segunda se
restringe à tradução de ficção, ou seja, de obras de literatura, tais como romances,
contos, poesia, teatro, etc.
O principal desafio da tradução literária consiste na
literariedade, que, embora seja difícil de definir, basicamente se refere ao conjunto
de características específicas (linguísticas, semióticas e sociológicas) que
permitem considerar um texto como literário.
O texto técnico se caracteriza
pela função referencial ou informativa, ou seja, têm o objetivo básico de
informar, utilizando para isso a linguagem denotativa ou literal, quando as palavras
são empregadas no sentido habitual encontrado no dicionário; o texto
literário, por sua vez, caracteriza-se pelo emprego da função poética, ou seja, a ênfase recai
sobre o próprio texto, o texto literário é um objeto estético.
No texto literário, predomina o sentido conotativo, as
palavras são empregadas com um sentido figurado, vão além do seu sentido
comum, adquirem um sentido simbólico conforme o contexto. Ele é subjetivo,
aberto a interpretações. Além disso, como foi dito mais acima, a ênfase recai
sobre a forma e não sobre o conteúdo. Em outras palavras, não importa tanto o
que se diz, mas como se diz. A mensagem é valorizada como objeto que proporciona
um prazer estético. Assim, quanto maior a literariedade do texto, maior a
dificuldade do tradutor, pois ele precisa reproduzir, na medida do possível, tal
efeito na língua de chegada.
Afora isso, a ficção tem outras características bem
desafiadoras, como a tradução de diálogos, em que é preciso atentar para a
verossimilhança, ou seja, fazer que os diálogos soem naturais na cultura de
chegada. Isso inclui o tratamento de expressões idiomáticas, regionalismos,
dialetos, gíria, etc. É muito difícil encontrar a medida certa: fazer com que os
diálogos soem naturais, sem descaracterizá-los, levando em conta o tom, se é
irônico, insolente, amável, lacerante, etc.
Outra dificuldade consiste no registro da linguagem, se é formal ou
culto, ou ainda, informal ou coloquial. São obstáculos também as referências culturais,
como, por exemplo, acontecimentos históricos, festas locais, costumes sociais.
Também é preciso levar em conta a época em que o texto foi escrito para usar um
vocabulário coerente e evitar anacronismos. Caso a obra aborde uma área
especializada, como, por exemplo, pesca artesanal, aviação, circo,
narcotráfico, criação de renas na Lapônia, ou coisa que o valha, o tradutor deverá
pesquisar vocabulário, técnicas, jargões e hábitos dos envolvidos nessas
atividades.
E, como se tudo isso não bastasse, terá ainda de lidar com os
famigerados termos "intraduzíveis", não apenas quando falta na cultura
de chegada um determinado objeto material, o problema é mais complexo, quando
se refere a um conceito, a algo abstrato que faz parte do imaginário de uma comunidade
linguística. Em seu livro A tradução literária, Paulo Henriques Britto menciona
como exemplo a dificuldade de traduzir para um estrangeiro o sentido da palavra
"desconfiômetro" usada no Brasil para criticar alguém em frases, como: "O Fulano não usa
desconfiômetro".
Traduzir literatura envolve escolhas, tomar decisões, renunciar e aceitar perdas. Apesar disso, ou, quem sabe, justamente por isso, é também uma tarefa muito recompensadora.
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