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segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Por que ler romances históricos?

Primeiramente é importante estabelecer a diferença entre romance histórico e romance de época. O primeiro consiste em uma ficção que tem como pano de fundo algum acontecimento histórico real, como, por exemplo, as guerras napoleônicas no romance Guerra e Paz, de Liev Tolstói, nesse tipo de romance há um compromisso com os fatos históricos. O segundo, por sua vez, não tem compromisso algum com a realidade, seu foco são os costumes da sociedade de uma época, como, por exemplo a sociedade carioca do século XIX em Dom Casmurro, de Machado de Assis.

Para quem tem vontade de conhecer mais a fundo alguns acontecimentos que marcaram época, os romances históricos são um prato cheio. Particularmente gosto muito desse tipo de romance porque é como uma viagem no tempo que nos permite conhecer fatos históricos, sociais e culturais. Diferentemente dos sisudos livros didáticos, os romances históricos estão carregados de uma boa dose de emoção e fantasia e por isso são mais fáceis de assimilar.

El sueño del celta

Do escritor peruano Mario Vargas Llosa, é um romance publicado em 2010, que narra a vida do legendário irlandês Roger Casement, o primeiro dos europeus a denunciar os horrores do colonialismo no Congo Belga e, posteriormente, na Amazônia peruana. Duas viagens memoráveis que mudariam Casement para sempre e que resultariam nos relatórios que abririam os olhos da sociedade europeia para as atrocidades cometidas contra os nativos congoleses e os índios peruanos. Ambos foram explorados como mão escrava para a extração do látex, no auge do comércio da borracha. Ao denunciar os horrores do colonialismo, Casement se torna simpatizante e ativista da causa irlandesa contra o domínio inglês, o que lhe rende a acusação de traição, afinal ele trabalhava como diplomata para a coroa inglesa.

A saga começa no Congo em 1903 e termina em uma prisão de Londres, numa manhã de 1916. Ao ser preso, acusado de traição contra a Inglaterra, sua vida pessoal é esculhambada com a publicação de uns diários íntimos, que revelam supostas aventuras homossexuais de veracidade duvidosa, o que lhe valeu o desprezo de muitos compatriotas, visto que naquela época a homossexualidade era considerada um crime. Difamado pela opinião pública, corre o risco de ser executado na forca.




El hereje

Do escritor espanhol Miguel Delibes, é um romance publicado em 1998, ambientado na Espanha da primeira metade do século XVI, e que narra a vida de um comerciante de peles, Cipriano Salcedo, cujo nascimento, além de causar a morte da mãe, coincide com a data em que Martinho Lutero fixou suas 95 teses na porta da igreja de Wittenber, 31 de outubro de 1517. Essa coincidência de datas marcaria tragicamente seu destino.

O autor traça um vivo retrato da cidade de Valladolid da época do rei Carlos I (imperador Carlos V do Sacro Império Romano Germânico), de uma Espanha que atravessa um período de convulsões políticas e religiosas. Em termos políticos, aborda a revolta dos comuneros, episódio em que as comunidades de Castilha se sublevaram contra o rei, porque não aceitavam que Castilha fosse governada por um estrangeiro, uma vez que Carlos nascera em Flandres, na Bélgica. Os comuneros queriam que Juana — mãe de Carlos e filha dos reis católicos Isabel e Fernando —, conhecida como Juana la loca, assumisse o trono. Ela se encontrava presa no castelo de Tordesillas desde que fora declarada louca. Mas, quando o levantamento comunero a libertou e exigiu que ela encabeçasse a revolta, Juana se negou a ir contra o filho Carlos. Este derrotou os revoltosos e voltou a enclausurar a mãe no castelo.

Por outro lado, em termos religiosos, havia um conflito entre a igreja católica e as correntes protestantes e reformistas defendidas por Lutero e Erasmo de Roterdã, que começavam a se introduzir na península de forma clandestina. Esta obra também fala do Concílio de Trento, mediante o qual Carlos I tenta conciliar as diferenças entre católicos e protestantes, a fim de se engajar na guerra contra os turcos. A Dieta Worms, também mencionada no livro, foi uma tentativa malograda de resolver a disputa. Martinho Lutero acusou Roma de exercer tirania e acabou excomungado pelo papa Leão X.

Mas voltemos ao nosso protagonista Cipriano Salcedo. Acusado de parricida pelo pai, Cipriano vivia atormentado pela culpa e não conseguia apaziguar suas inquietudes espirituais na religião católica, até que acaba encontrando conforto numa fraternidade secreta de protestantes, na qual se torna ativista e propagador e, como consequência, acaba perseguido pela implacável Inquisição. Além da questão da turbulência política e religiosa, merece destaque também o caráter empreendedor de Cipriano que, de comerciante de peles, acaba se tornando um empresário no mundo da “moda”, ao transformar um rudimentar casaco de pele e lã usado pelos camponeses em uma peça cobiçada pela alta sociedade.

Largo pétalo de mar

O mais recente romance da escritora chilena Isabel Allende é uma viagem através da história do século XX. Narra a proeza dos imigrantes espanhóis republicanos que, em 1939, após a derrota na Guerra Civil e a vitória do general Franco, travam uma arriscada fuga de Barcelona rumo à França e, depois de sofrer uma série de privações nos campos de refugiados, vislumbram uma oportunidade de iniciar uma nova vida no Chile. Isso graças ao poeta chileno Pablo Neruda que, comovido com a situação dos exilados, se mobiliza para obter do governo chileno o compromisso de acolher a mais de 2 mil refugiados espanhóis. Assim, a bordo do navio Winnipeg, fretado pelo poeta, atravessam o oceano Atlântico rumo ao Chile, “esse largo pétalo de mar y nieve”, nas palavras de Neruda.

Este foi meu primeiro contato com a literatura de Isabel Allende e, sem dúvida, pretendo ler mais obras dela em breve, pois foi uma leitura muito envolvente. Tal como no filme “A casa dos espíritos”, baseado no seu romance homônimo, a autora revela grande destreza na arte de contar histórias. Com muita habilidade nos apresenta a vida de duas famílias ao longo de várias gerações, a maneira como os acontecimentos políticos afetam as vidas de milhares de pessoas, e as reações individuais diante das adversidades. 

Neste caso, aborda precisamente o período que vai de 1938 a 1994, que abrange a Guerra Civil espanhola, a Segunda Guerra Mundial e, por fim, o golpe militar no Chile, em 11 de setembro de 1973. Quando, sob as ordens de Augusto Pinochet, os militares chilenos derrubaram o governo Salvador Allende. O presidente foi morto em circunstâncias não esclarecidas e Pinochet instaurou uma ditadura militar truculenta que se estendeu até 1990.

Embora a obra seja um reflexo de suas próprias experiências familiares, uma vez que Isabel é sobrinha do presidente chileno deposto pelo golpe, Salvador Allende, e tendo sido ela mesma uma exilada na Venezuela, como autora consegue manter certo distanciamento, abstendo-se de emitir juízos categóricos. Ao menos foi essa minha impressão. 

Para finalizar, quando busco uma boa razão para ler os romances históricos, vem-me à mente o argumento de Ítalo Calvino em Por que ler os clássicos?, isto é, por que não lê-los? Além disso, para exercer o ofício com alguma propriedade, o tradutor deve contar com um conhecimento mínimo da história, cultura, costumes e tradições tanto do país da língua de partida como do país da língua de chegada, assim como uma ampla cultura geral sobre conflitos, geografía, arte, religiões, história, entretenimento, ciências naturais, esportes, etc. 

Tal como disse Miguel de Cervantes "Quem lê muito e anda muito, vê muito e sabe muito".


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