terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

Literatura e gramática




Ao pensar na relação gramática-literatura, a primeira coisa que me vem à mente é a minha própria experiência: quando adolescente, eu amava a literatura, mas detestava a gramática. Lembro-me bem de uma ocasião em que a professora tentava explicar a diferença entre as subordinadas causais e as coordenadas explicativas, e tudo o que eu mais queria naquela hora era transformar-me em um pastor de ovelhas, em um ermitão ou em coisa que o valha. Em outras palavras, o que eu mais queria era fugir de tudo aquilo. Minha postura era totalmente arrogante em relação à gramática e à redação, eu gostava de frases de efeito do tipo “metamos o martelo nas teorias...”, do escritor francês Vitor Hugo. Mal sabia eu que o caráter revolucionário do Romantismo defendia a liberdade de criação e de expressão, o fim dos padrões estéticos e não o fim da gramática!

Eu só conseguia me concentrar no martelo quebrando tudo, não prestava atenção ao restante da frase: “Metamos o martelo nas teorias, nas poéticas e nos sistemas. Abaixo este velho reboco que mascara a fachada da arte! Não há regras nem modelos além das leis da natureza, que planam sobre toda a arte, e das leis especiais que, para cada composição, derivam das condições próprias de cada assunto". Eu não conseguia enxergar a precisão gramatical  por tras daquela frase, que permitia que o autor se expressasse com clareza e perfeição.

Por outro lado, um dos meus passatempos favoritos era ler e reler os contos do escritor britânico Oscar Wilde, que se destaca pelo extremo gosto pela beleza. O autor da época vitoriana pertenceu ao realismo e se identificou especificamente com o esteticismo inglês, movimento artístico baseado na doutrina de que a arte existe para benefício de sua exclusiva beleza e que esta deve ser elevada acima da moral e dos temas sociais na literatura.

Parece contraditório, não?

Anos mais tarde, após estudar letras e ter a oportunidade de trabalhar como professora de língua portuguesa e literatura, pude entender que a escrita, principalmente a literária, não é um dom inato, uma dádiva que o autor invoca como um xamã. Entendi que a estética literária é fruto, sim — em parte —, da criatividade e da inspiração, mas também de muito trabalho e reflexão e, que, ao contrário do que eu imaginava, a gramatica não é um instrumento de opressão e tortura, mas um meio que nos permite acessar e manifestar o belo.

Hoje, passados mais de dez anos de dedicação exclusiva à tradução, a minha relação com a gramática é de gratidão e admiração. Quando falo de gramática, não me refiro a uma visão meramente prescritiva e normativa, mas às associações conceituais, à estilística e às funções exercidas por cada elemento que compõe esse sistema vivo e pulsante chamado língua. Uma boa estratégia para ensinar gramática é ensiná-la contextualizada por meio da literatura, para mostrar que aquela não é um reboco que engessa e tolhe a arte, mas sim o contrário: o acabamento que enfatiza sua beleza e forma.

Em certa ocasião, já na faculdade, na aula de Teoria da Literatura, o professor falava sobre o movimento literário do Romantismo, e eu fiz um comentário sobre a sua relação com a Revolução Francesa. O professor me constrangeu diante da turma dizendo que assim eu estava "matando" a literatura, que se eu me interessava por História deveria procurar outro curso... Como se os escritores fossem seres alheios à realidade e à sociedade... Por que tratar a literatura como algo sagrado acima do bem e do mal, acima do próprio homem? "A literatura é. E ponto" essa era a definição de literatura defendida pelo tal professor. Desculpem o desabafo.


educador.brasilescola.uol.com.br

  



2 comentários:

  1. Adorei seu artigo, Madrinha. Bença! Beijão!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. [Seu madruga, piscando e com a mão na garganta, engole em seco]
      Obrigada e que Deus te abençoe!

      Excluir