Páginas

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

O relativismo na tradução



O artigo de hoje se refere a uma corrente de pensamento que se apresenta como receptiva e indulgente, mas que me parece, ao contrário, excludente e inflexível.

Refiro-me ao relativismo como pensamento que propõe que não existe verdade absoluta, no plano geral, a verdade sendo aquilo que cada um percebe como tal, no plano particular. A célebre frase do poeta espanhol Ramón de Campoamor que diz: “En este mundo traidor / nada es verdad ni mentira / todo es según el color / del cristal con que se mira” deu origem à expressão “Lei Campoamor”, empregada hoje em dia, geralmente no âmbito da administração pública, como uma metáfora para indicar que alguém fez uma interpretação arbitrária de uma lei para obter vantagens.

Provavelmente a intenção do poeta não era preconizar a liberdade individual em detrimento da justiça, mas expressar sua desconfiança em relação a um mundo em que a realidade sofre constante transformação.

O relativismo de grupo defende que a verdade depende da cultura, da classe social, do gênero etc., no entanto, o relativismo mais radical é aquele que defende que há tantas verdades quanto pessoas houver, pois cada pessoa tem a sua própria verdade. “O homem é a medida de todas as coisas” é um trecho de uma conhecida frase do sofista grego Protágoras, que expressa a noção do relativismo, propondo que cada pessoa compreende uma coisa da sua maneira específica.

Assim, uma ideia que em princípio parece acolher todas as opiniões, na verdade coloca a opinião individual acima de todas as outras em nome de uma suposta liberdade e suplanta valores morais como bem e mal, ética e justiça.

No entanto, o que me interessa aqui é questionar o modo como o relativismo pode afetar o âmbito da tradução. Para isso, usarei como subsídio a obra A tradução literária, do tradutor Paulo Henriques Britto, publicada pela primeira vez em 2012.

Na área da tradução, mais especificamente a tradução literária, o relativismo coloca em xeque principalmente a noção de fidelidade ao texto original e a possibilidade de julgar a qualidade de uma tradução.

A relativização seria a desconstrução de verdades predeterminadas. Quando uma nova geração de críticos, inspirados pela desconstrução francesa e pelo pragmatismo norte-americano, passou a questionar alguns pressupostos básicos como a ideia de que o texto literário tem um sentido estável e único a ser decifrado, isso teve um impacto crucial no campo da tradução. Passou-se a questionar a noção de autoria, já que nenhum texto seria original, pois todo texto seria inspirado por outros textos, constituindo uma trama de significados, um diálogo entre autores, e o significado do texto, em última instância, se daria pelo encontro com o leitor. Consequentemente, colocou-se em dúvida a relação de hierarquia entre o original e a tradução, e alguns teóricos mais extremos passaram a afirmar que tal distinção não passaria de preconceito.

A ideia de um texto aberto a múltiplas interpretações deitaria por terra a noção de fidelidade?

Segundo Paulo Britto, não. Embora ele admita que o significado não é uma propriedade estável do texto, uma essência que possa ser destacada e isolada e, ainda que sua visão de sentido seja também antiessencialista, ele defende que a tradução, como atividade pragmática, estaria sujeita às convenções do que se entende por tradução na sociedade e tempo em que vivemos. A tradução segue determinadas regras que constituem o que podemos chamar de “jogo da tradução”.  Eis algumas regras deste jogo: o tradutor deve pressupor que o texto literário possui uma pluralidade de sentidos, ambiguidades e indefinições, e deve produzir um texto que possa ser lido como “a mesma coisa que o original”, reproduzindo os efeitos de sentido, estilo e som, de maneira que o leitor da tradução possa afirmar, sem mentir, que leu o original.

Assim, este autor defende que tradução e criação literária não são a mesma coisa; que a fidelidade ao original é crucial na tradução e que, não só podemos como devemos avaliar criticamente traduções com certo grau de objetividade.

O fato de não podermos ser absolutamente objetivos em termos de avaliação não nos condena a uma subjetividade absoluta. Julgar qualitativamente uma tradução com base em critérios razoavelmente objetivos, e não apenas no gosto pessoal, não é somente possível como necessário.

Embora a fidelidade absoluta seja uma meta intangível, isso não a invalida como meta. Todo o conhecimento do real é sujeito a dúvidas e imprecisões, o que não significa que seja absolutamente impossível afirmar algo a respeito do que quer que seja com certo grau de objetividade.

Diferentemente do texto técnico, em que se destaca a função referencial, isto é, o caráter informativo e funcional do texto; no texto literário, destaca-se a função poética, isto é, a mensagem em si e o prazer estético que esta proporciona. Mesmo sendo impossível a reprodução total de todos os aspectos da literariedade do texto original, a tarefa do tradutor consiste em determinar as caraterísticas mais relevantes do texto e passíveis de reconstrução na língua meta.

Com base nesses pressupostos, uma boa tradução literária seria aquela que conseguisse preservar, na medida do possível, a literariedade do texto original e que conseguisse reproduzir os seus efeitos: um texto que provoque riso no original deveria fazê-lo em sua tradução; um texto considerado difícil, espinhoso e estranho na cultura de origem deveria provocar essa mesma sensação no público da cultura para o qual foi traduzido, e assim por diante. Além disso, é possível analisar de modo objetivo a qualidade de uma tradução literária observando aspectos como a sintaxe, o vocabulário, o grau de formalidade, a temporalidade, o estilo, as conotações, entre muitos outros.

3 comentários:

  1. Excelente texto! O papel do tradutor não deve ser confundido com a interpretação - essa sim livre de qualquer obrigação ética - do leitor final do texto. Parabéns Diana!

    ResponderExcluir