O artigo de hoje se refere a uma corrente de pensamento que se apresenta como
receptiva e indulgente, mas que me parece, ao contrário, excludente e inflexível.
Refiro-me ao
relativismo como pensamento que propõe que não existe verdade absoluta, no
plano geral, a verdade sendo aquilo que cada um percebe como tal, no plano
particular. A célebre frase do poeta espanhol Ramón de Campoamor que diz: “En
este mundo traidor / nada es verdad ni mentira / todo es según el color / del
cristal con que se mira” deu origem à expressão “Lei Campoamor”, empregada
hoje em dia, geralmente no âmbito da administração pública, como uma metáfora
para indicar que alguém fez uma interpretação arbitrária de uma lei para obter
vantagens.
Provavelmente a
intenção do poeta não era preconizar a liberdade individual em detrimento da
justiça, mas expressar sua desconfiança em relação a um mundo em que a
realidade sofre constante transformação.
O relativismo de grupo
defende que a verdade depende da cultura, da classe social, do gênero etc., no
entanto, o relativismo mais radical é aquele que defende que há tantas verdades
quanto pessoas houver, pois cada pessoa tem a sua própria verdade. “O homem é a
medida de todas as coisas” é um trecho de uma conhecida frase do sofista
grego Protágoras, que
expressa a noção do relativismo,
propondo que cada pessoa compreende uma coisa da sua maneira específica.
Assim, uma ideia que
em princípio parece acolher todas as opiniões, na verdade coloca a opinião
individual acima de todas as outras em nome de uma suposta liberdade e suplanta
valores morais como bem e mal, ética e justiça.
No entanto, o que me
interessa aqui é questionar o modo como o relativismo pode afetar o âmbito da
tradução. Para isso, usarei como subsídio a obra A tradução literária, do tradutor Paulo Henriques Britto, publicada
pela primeira vez em 2012.
Na área da tradução,
mais especificamente a tradução literária, o relativismo coloca em xeque
principalmente a noção de fidelidade ao texto original e a possibilidade de
julgar a qualidade de uma tradução.
A relativização seria
a desconstrução de verdades predeterminadas. Quando uma nova geração de
críticos, inspirados pela desconstrução francesa e pelo pragmatismo norte-americano,
passou a questionar alguns pressupostos básicos como a ideia de que o texto
literário tem um sentido estável e único a ser decifrado, isso teve um impacto
crucial no campo da tradução. Passou-se a questionar a noção de autoria, já que
nenhum texto seria original, pois todo texto seria inspirado por outros textos,
constituindo uma trama de significados, um diálogo entre autores, e o
significado do texto, em última instância, se daria pelo encontro com o leitor.
Consequentemente, colocou-se em dúvida a relação de hierarquia entre o original
e a tradução, e alguns teóricos mais extremos passaram a afirmar que tal
distinção não passaria de preconceito.
A ideia de um texto
aberto a múltiplas interpretações deitaria por terra a noção de fidelidade?
Segundo Paulo Britto,
não. Embora ele admita que o significado não é uma propriedade estável do
texto, uma essência que possa ser destacada e isolada e, ainda que sua visão de
sentido seja também antiessencialista, ele defende que a tradução, como atividade
pragmática, estaria sujeita às convenções do que se entende por tradução na
sociedade e tempo em que vivemos. A tradução segue determinadas regras que
constituem o que podemos chamar de “jogo da tradução”. Eis algumas regras deste jogo: o tradutor deve
pressupor que o texto literário possui uma pluralidade de sentidos,
ambiguidades e indefinições, e deve produzir um texto que possa ser lido como
“a mesma coisa que o original”, reproduzindo os efeitos de sentido, estilo e
som, de maneira que o leitor da tradução possa afirmar, sem mentir, que leu o
original.
Assim, este autor
defende que tradução e criação literária não são a mesma coisa; que a
fidelidade ao original é crucial na tradução e que, não só podemos como devemos
avaliar criticamente traduções com certo grau de objetividade.
O fato de não podermos
ser absolutamente objetivos em termos de avaliação não nos condena a uma
subjetividade absoluta. Julgar qualitativamente uma tradução com base em
critérios razoavelmente objetivos, e não apenas no gosto pessoal, não é somente
possível como necessário.
Embora a fidelidade
absoluta seja uma meta intangível, isso não a invalida como meta. Todo o
conhecimento do real é sujeito a dúvidas e imprecisões, o que não significa que
seja absolutamente impossível afirmar algo a respeito do que quer que seja com
certo grau de objetividade.
Diferentemente do
texto técnico, em que se destaca a função referencial, isto é, o caráter
informativo e funcional do texto; no texto literário, destaca-se a função
poética, isto é, a mensagem em si e o prazer estético que esta proporciona. Mesmo
sendo impossível a reprodução total de todos os aspectos da literariedade do
texto original, a tarefa do tradutor consiste em determinar as caraterísticas
mais relevantes do texto e passíveis de reconstrução na língua meta.
Com base nesses pressupostos,
uma boa tradução literária seria aquela que conseguisse preservar, na medida do
possível, a literariedade do texto original e que conseguisse reproduzir os
seus efeitos: um texto que provoque riso no original deveria fazê-lo em sua
tradução; um texto considerado difícil, espinhoso e estranho na cultura de
origem deveria provocar essa mesma sensação no público da cultura para o qual
foi traduzido, e assim por diante. Além disso, é possível analisar de modo
objetivo a qualidade de uma tradução literária observando aspectos como a
sintaxe, o vocabulário, o grau de formalidade, a temporalidade, o estilo, as
conotações, entre muitos outros.
Excelente texto! O papel do tradutor não deve ser confundido com a interpretação - essa sim livre de qualquer obrigação ética - do leitor final do texto. Parabéns Diana!
ResponderExcluirExcelente!!!
ResponderExcluirObrigada!
Excluir