Há praticamente um mês, publiquei a primeira parte da série “Minha primeira experiência com tradução literária” — experiência essa que eu pretendia descrever da forma mais profissional e objetiva possível; mas, como não poderia deixar de ser, o resultado foi o oposto, o mais subjetivo, descontrolado e sincero possível. Recapitulando: junho de
2016 > férias com a família > parque aquático > tobogã “Insano” > proposta para fazer um
teste de tradução literária > realização do teste > ataque
de nervos > aprovação no teste!
Quando soube que traduziria
literatura infantojuvenil, confesso que pensei “ah, que bom, literatura infantojuvenil deve ser mais fácil que literatura adulta”.
Ledo engano! Logo vi como havia sido ingênua. Já no teste, pude sentir o
gostinho do que estava por vir. Logo nas primeiras páginas, surgiram as primeiras dúvidas, “e agora, como traduzo ‘mamá’?”. Por minha própria experiência como mãe de dois adolescentes meninos não costumo ouvir “ma-mãe”. No norte do país, sim, ouve-se muito “mamãe”, “vovó” e “titia” e na música do Titãs, mas fora isso, é uma forma regional ou infantil, por isso, optei por “mãe”. Somente para ilustrar, essa foi uma das dúvidas mais simplórias, logo vieram
outras mais tensas que comentarei mais adiante.
Uma vez superada a
adrenalina inicial do teste e a estupefação de ver um sonho tornar-se realidade,
veio a parte prática: a parte em que arregaçamos as mangas e colocamos as mãos
na massa.
O primeiro livro que
traduzi do espanhol para o português para a Editora Edebê foi La nueva vida del señor Rutin (A nova vida do senhor Rutin).
Minha primeira atitude foi procurar informação a respeito de David Nel.lo, o autor.
Soube que é um escritor e músico catalão, de Barcelona, que já conquistou vários prêmios como autor de obras infantojuvenis.
O livro em questão recebeu o Prêmio Edebé de Literatura Infantil. A seguir fui saber do
senhor Rutin... o senhor Rutin é sueco, nasceu em Visby, na ilha de Gotland, é
claro que eu fui procurar imagens e informação sobre Visby e constatei que é
uma cidade com aspecto medieval, cercada de muralhas de pedra e repleta de
chalés e canteiros de flores, um encanto de cidade! E então fiquei sabendo que
o escritor passou uma temporada no Centro de Escritores e Tradutores de Visby e, a seguir, uma temporada no Centro Internacional de Escritores e Tradutores na
ilha de Rodas, na Grécia. Assim, nas palavras dele, a Suécia foi a fonte de
inspiração do livro e a Grécia o laboratório onde foi escrito.
Essa pesquisa serviu
para ambientar-me no livro, mergulhar em sua atmosfera e estabelecer conexões.
Realizada essa primeira pesquisa, senti-me mais preparada para encarar o
desafio.
Acho que todo o mundo
se pergunta se o tradutor lê o livro antes de traduzi-lo, no mundo ideal seria
legal poder fazer isso; porém, no mundo real, precisamos cumprir prazos e não há
tempo para fazer uma leitura prévia à tradução. Assim, fui lendo e traduzindo, e
sentindo o prazer de acompanhar a história paralelamente à tradução, sem spoilers, o que é muito prazeroso, você
se envolve com a história e vai dormir desejando saber o que vai acontecer no
próximo capítulo.
Mas vamos aos aspectos
linguísticos e tradutórios... uma coisa que tirava meu sono no início era a
dicotomia entre coloquialismo e língua formal. Como profissionais da área de
línguas e comunicação, acho que devemos zelar sempre pela norma, por outro lado,
para que a comunicação seja eficiente, precisamos considerar o público alvo e o
a função do texto com o qual estamos lidando. No texto literário prevalece a
função poética, isto é, a ênfase recai no próprio texto, na forma como se dizem
as coisas, o texto literário é um objeto estético. Vieram à tona algumas
questões vistas na faculdade sobre estrangeirização e domesticação, fidelidade,
correspondências, etc. Nesse sentido, ajudou-me bastante o livro de Paulo Henriques Britto, A Tradução Literária,
com cuja ideologia me identifico, uma frase dele que representa bem seu
pensamento é a seguinte:
“Quando leio um romance de
Dostoievski em português, quero encontrar no texto uma série de marcas que a
assinalem como uma obra russa — as distâncias expressas em verstas,
as quantias expressas em rublos e copeques, os personagens tratando-se por primeiro
nome e patrônimo ou por diminutivos de segundo ou terceiro grau — e
como uma obra de Dostoievski — com a pluralidade de vozes, a
intensidade emocional, até mesmos os excessos de veemência que alguns críticos
apontam na obra do autor. Mas quero, ao mesmo tempo, que o texto em português
seja de algum modo uma apresentação, uma versão de Dostoievski, e não um
comentário, uma paródia, uma glosa do romance original. Em suma: uma tradução
que respeite o que há de estrangeiro, e de estranho, no original,
proporcionando-me a ilusão de que estou lendo uma obra de Dostoievski, mas que
seja também um romance em português, e não uma peça metalinguística — e
portanto um não-romance — construída sobre o texto de
Dostoievski.”
Outro tradutor em quem
me inspiro e com cujos pensamentos me identifico é Carlos Nougué, ele foi meu
professor, e não me esqueço de suas palavras quando dizia que o
tradutor deve ter uma fidelidade canina para com o original.
Mas voltando à
questão entre a norma e a coloquialidade, compreendi que, em se tratando de
literatura, não há uma luta entre o bem e o mal, os dois conceitos são complementares e essenciais. Para uma tradução
bem-sucedida de diálogos e de texto narrativo, é fundamental o conceito da verossimilhança,
ou seja, a sensação de que aquilo que estamos lendo é real e de que os
personagens de fato estão “falando”. Para conseguir esse efeito, precisamos
reproduzir a distância entre a língua escrita e a língua falada, com todos os desvios e vícios que esta última carrega, precisamos sair da nossa zona de conforto e
usar a criatividade, num esforço constante para encontrar a medida certa, somos obrigados o tempo todo a tomar decisões e a fazer escolhas. A tal visibilidade
do tradutor, em minha opinião, resume-se a isso: suas escolhas.
Deixando a paranoia teórica
um pouco de lado, como complexidade pouca é bobagem, tinha de haver uma
dificuldade extra para a empresa ficar mais desafiante, foi então que o senhor
Rutin decidiu que sua rotina metódica e regrada estava tornando-se monótona e resolveu se autoimpor
um desafio de ordem linguística que revolucionaria seu modo de falar. O que
mais poderia ser? Nada de mais, só para zoar um pouco com a pobre da tradutora...
Ai, que saudades dessa
história querida! Pois é, nem só de dificuldades vivem os tradutores, esse foi
sem dúvida o trabalho mais gratificante que já realizei, se é que pode
chamar-se trabalho. Além do prazer de traduzir, pude sentir o gostinho de
voltar a esse lugar lindo e inspirador chamado infância.
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