Por ocasião dos cinco
anos sem Millôr Fernandes, vamos celebrar sua criatividade, autenticidade e bom humor,
apreciando um pequeno fragmento seu sobre a arte de traduzir, de uma entrevista
para a Revista Senhor, em 1962.
«Com a experiência
que tenho, hoje, em vários ramos de atividade cultural, considero a tradução a
mais difícil das empreitadas intelectuais. É mais difícil mesmo do que criar
originais, embora, claro, não tão importante. E tanto isso é verdade que, no
que me diz respeito, continuo a achar aceitáveis alguns contos e outros
trabalhos meus de vinte anos atrás; mas não teria coragem de assinar nenhuma
das minhas traduções da mesma época. Só hoje sou, do ponto de vista cultural e
profissional, suficientemente amadurecido para traduzir. As traduções quase sem
exceção (e não falo só do Brasil), têm tanto a ver com o original quanto uma
filha tem a ver com o pai ou um filho a ver com a mãe. Lembram, no todo, de
onde saíram, mas, pra começo de conversa, adquirem como que um outro sexo. No
Brasil, especialmente (o problema econômico é básico), entre o ir e o vir da
tradução perde-se o humor, a graça, o talento, a poesia, o pensamento, e, mais
que tudo, o estilo do autor.
Fica dito – não se
pode traduzir sem ter uma filosofia a respeito do assunto. Não se pode traduzir
sem ter o mais absoluto respeito pelo original e, paradoxalmente, sem o
atrevimento ocasional de desrespeitar a letra do original exatamente para lhe
captar melhor o espírito. Não se pode traduzir sem o mais amplo conhecimento da
língua traduzida mas, acima de tudo, sem o fácil domínio da língua para a qual
se traduz. Não se pode traduzir sem cultura e, também, contraditoriamente, não
se pode traduzir quando se é um erudito, profissional utilíssimo pelas
informações que nos presta – o que seria de nós sem os eruditos em Shakespeare?
– mas cuja tendência fatal é empalhar a borboleta. Não se pode traduzir sem
intuição. Não se pode traduzir sem ser escritor, com estilo próprio,
originalidade sua, senso profissional. Não se pode traduzir sem dignidade.»
Escritor, desenhista, dramaturgo, humorista, considerado um dos maiores frasistas brasileiros, colaborou em diversos veículos com suas observações críticas e irreverentes sobre a vida, relacionamentos, política e sociedade. Como não podia ser
diferente, como tradutor, Millôr também defendia algumas convicções polêmicas “Ao
traduzir, é preciso ter todo rigor e nenhum respeito pelo original”. Claro que
não devemos interpretar essa declaração ao pé da letra, o que ele defendia era
que traduzir bem é obter o melhor resultado possível na língua de chegada, o
resultado mais inteligível e inteligente, encarando o idioma de partida como de
fato é: idioma de partida.
Outra questão polêmica
é que Millôr era autodidata e tinha a convicção de que, para realizar uma boa
tradução, não era necessário dominar plenamente o idioma de partida nem
conhecer com profundidade o contexto em que o autor havia escrito. Para ele, o
essencial era conhecer bem o próprio idioma e elaborar em português uma versão
pessoal e interpretativa do texto estrangeiro, negando, a existência de “expressões
intraduzíveis”.
Confesso que me sinto “quadrada”
diante de tanta ousadia. Em se tratando de tradução literária, sou bem mais “careta”,
acho que o texto original e o idioma de partida são a baliza que não devemos
perder de vista, e encaro nossa missão de uma forma mais “serviçal” no sentido
de que nosso papel é permitir que o autor chegue até os leitores que não leem em
sua língua. Esse é meu lado racional falando, mas como boa geminiana, meu lado emocional se encanta com imagem da borboleta voando livremente... εïз
Polêmicas à parte, não
deixo de admirar e de me inspirar na coragem e perspicácia de Millôr, mas convenhamos que ele não era nenhum inconsequente, apesar de suas frases polêmicas, observamos no trecho da entrevista que ele acredita, sim, no respeito ao original, no amplo conhecimento da cultura e da língua traduzida e no domínio da língua para a qual se traduz, enfim, é um "rebelde ajuizado" ;-)
Como sempre, é muito bom ler tuas publicações.
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