terça-feira, 11 de outubro de 2016

Ambiguidade no uso do pronome relativo "que"

Reuni aqui algumas explicações de gramáticos e de um site de consultas gramaticais, o Ciberdúvidas, sobre um assunto bastante espinhoso tanto na língua portuguesa quanto na língua espanhola, que é a ambiguidade no uso do pronome que quando há mais de um antecedente. Como resolver essa ambiguidade? Devemos colocar vírgula ou não? O que fazer?

Sabe-se que o pronome relativo que pode iniciar orações adjetivas restritivas e orações adjetivas explicativas.

As adjetivas restritivas nunca se antecedem de nenhum sinal de pontuação “Recebi um e-mail de minha irmã que mora em Madri”. Nesse período, podemos afirmar que a pessoa que fala tem no mínimo dois irmãos, uma que mora em Madri e outro(a) que mora em outro lugar. O substantivo irmão neste caso tem seu sentido restrito pela oração adjetiva restritiva “que mora em Madri”.

Por sua vez, as adjetivas explicativas sempre se antecedem de vírgula (ou travessão ou, ainda, parêntese), “Recebi um e-mail de minha irmã, que mora em Madri”. Nesse período, podemos afirmar com segurança que a pessoa que fala tem somente uma irmã, a qual mora em Madri. A vírgula está adicionando uma explicação, um detalhe que se deseja realçar, por meio de uma oração adjetiva explicativa.

No entanto, quando há mais de um antecedente, ou quando o que não está junto de seu antecedente, pode ocorrer ambiguidade, vejamos abaixo algumas formas de resolver essa ambiguidade.

Segundo Evanildo Bechara, em seu livro Moderna Gramática da Língua Portuguesa:

Posição do relativo – Normalmente o que vem junto do seu antecedente; quando isto não se dá e o sentido da oração periga, desfaz-se a dúvida com o emprego de o qual, de e este ou se repete o antecedente, ou se põe a vírgula para mostrar que o relativo não se refere ao antecedente mais próximo:

“Mas ele tinha necessidade de sanção de alguns, que [isto é, sanção e não alguns] lhe confirmassem o aplauso dos outros” [MA. 1, 138].

“Arrastaram o saco para o paiol e o paiol ficou a deitar fora” (CN. 1, 12].

Poderia também dizer o autor:

Arrastaram o saco para o paiol que ficou a deitar fora.
Arrastaram o saco para o paiol o qual ficou...
Arrastaram o saco para o paiol e este ficou...

Note-se como Camilo evita o equívoco nesta passagem:

“Eu de mim, se não estivesse amortalhada no sobretudo do meu marido, que vou escovar [o sobretudo], era dele, como a borboleta é da chama...” [CBr. 12, 18 apud MBa 5, 303].

Carlos Nougué, em seu livro Suma Gramatical da Língua Portuguesa, explica que:

Nas orações ADJETIVAS EXPLICATIVAS, o que pode substituir-se pela locução o qual (a qual, os quais, as quais):

O o desta locução é, ele mesmo, diacrítico: surgiu para evitar ambiguidade com respeito a gênero.
O autor desta obra, o qual só obteve reconhecimento tardio...

Atente-se porém à razão por que se usa aqui tão corretamente o qual em lugar de que: se se pusesse que, hesitar-se-ia quanto ao antecedente: esta obra ou o autor? Por isso julgamos de todo procedente a seguinte regra: reserve-se o qual (a qual, os quais, as quais) para os casos em que possa dar-se o menor grau de ambiguidade (em especial quando o relativo se refere a antecedente distante), a menor dificuldade de compreensão imediata ou ainda qualquer necessidade de ênfase, e use-se o que nos demais casos:

CERVANTES, que nasceu no século XVI...;

Multiplicavam-se as corruptelas no LATIM VULGAR falado na península, o qual já havia muito vinha diversificando-se em vários dialetos;

Era HERANÇA dos avós, a qual era preciso salvar;

 Mas os poetas têm “direitos” próprios, decorrentes de sua mesma arte, na qual não se cingem necessariamente às regras gramaticais [aqui se trata de pura necessidade de ênfase];

OBSERVAÇÃO. Quando se trata de orações adjetivas restritivas, como não se pode recorrer a o qual para resolver a dificuldade, muitas vezes se faz necessário dar outro torneio à frase. Ponha-se o seguinte exemplo: “Estive na escola da cidade que fora fundada no início do século”. Se o antecedente pretendido é cidade e esta não tem senão uma escola, então a frase está corretamente construída. Se porém o antecedente pretendido é escola e esta não é a única da cidade, escreva-se então algo como Na cidade, estive na ESCOLA que fora fundada no início do século. Cada caso, todavia, será singular e, portanto, haverá de resolver-se singularmente.

Veja a seguir, a resposta dada no site Ciberdúvidas da Língua Portuguesa à dúvida de um consulente, o qual gostaria de saber se a vírgula colocada após a palavra “corpo”, nos versos abaixo, esclarece que se está referindo ao fogo que aquece e não o corpo.

«Sigo o fogo do teu corpo,
que aquece a noite
e dissipa a cerração.»

A colocação de vírgula proposta na pergunta não surte o efeito pretendido pelo consulente. Na verdade, com vírgula ou sem vírgula, é sempre ambígua a relação de que com o antecedente: este tanto pode ser fogo como corpo. A única coisa que a vírgula pode fazer é transformar a oração (ou frase) relativa restritiva introduzida por que em oração apositiva. De resto, a ambiguidade mantém-se.

Podemos construir casos semelhantes, como os das seguintes frases:

(1) Traz-me o casaco do teu irmão que está na sala.
(2) Traz-me o casaco do teu irmão, que está na sala.

Em (2), a vírgula só indica que a oração relativa é apositiva, acrescentando informação à subordinante, em contraste com a ausência de vírgula em (1), em que ocorre uma relativa que restringe o significado do constituinte “o casaco do teu irmão”. De todos os modos, o pronome relativo não define com clareza se o “que está na sala” é “o teu irmão” ou “o casaco do teu irmão”.
Voltando aos versos da pergunta, o autor poderia ter escrito ”Sigo do teu corpo o fogo/ que aquece a noite...”, recorrendo a uma inversão na ordem dos constituintes, isto é, deslocando o modificador preposicional de nome para esquerda. Assim, conseguir-se-ia perceber o que ele pretende.

Para terminar, a explicação de María Marta García Negroni em seu livro El arte de escribir:

Delante de un que especificativo cuando está separado de su antecedente, particularmente si también puede funcionar como antecedente el sustantivo inmediatamente anterior. Ejemplo:

Aerolito es un fragmento de un bólido, que cae sobre la tierra. (Si se suprime la coma, el que cae puede ser el bólido)

En todos los casos en que es necesario indicar que un elemento se relaciona no con la palabra inmediatamente precedente sino con otra más alejada o con todo el enunciado. Ejemplos:

Obligó a Pedro a hablar, con habilidad.
Cfr.: Obligó a Pedro a hablar con habilidad.
Para que no se desvíe, en su elección, de las normas señaladas.
Cfr.: Para que no se desvíe en su elección de las normas señaladas.
Logró su objetivo, felizmente.
Cfr.: Logró su objetivo felizmente.

Referências:
Moderna Gramática Portuguesa, de Evanildo Bechara.
Suma Gramatical da Língua Portuguesa, de Carlos Nougué.
Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
El arte de escribir, de María Marta García Negroni.

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