Reuni aqui algumas explicações de gramáticos e de um site de consultas gramaticais, o Ciberdúvidas, sobre um assunto bastante espinhoso tanto na língua portuguesa quanto na língua espanhola, que é a ambiguidade no uso do pronome que quando há mais de um antecedente. Como resolver essa ambiguidade? Devemos colocar vírgula ou não? O que fazer?
Sabe-se que o
pronome relativo que pode iniciar orações adjetivas restritivas e orações adjetivas explicativas.
As adjetivas
restritivas nunca se antecedem de nenhum sinal de pontuação “Recebi um e-mail
de minha irmã que mora em Madri”. Nesse
período, podemos afirmar que a pessoa que fala tem no mínimo dois irmãos, uma
que mora em Madri e outro(a) que mora em outro lugar. O substantivo irmão neste
caso tem seu sentido restrito pela oração adjetiva restritiva “que mora em
Madri”.
Por sua vez, as adjetivas explicativas sempre se antecedem de vírgula (ou travessão ou, ainda, parêntese), “Recebi um e-mail de minha irmã, que mora em Madri”. Nesse período, podemos afirmar com segurança que a pessoa que fala tem somente uma irmã, a qual mora em Madri. A vírgula está adicionando uma explicação, um detalhe que se deseja realçar, por meio de uma oração adjetiva explicativa.
Por sua vez, as adjetivas explicativas sempre se antecedem de vírgula (ou travessão ou, ainda, parêntese), “Recebi um e-mail de minha irmã, que mora em Madri”. Nesse período, podemos afirmar com segurança que a pessoa que fala tem somente uma irmã, a qual mora em Madri. A vírgula está adicionando uma explicação, um detalhe que se deseja realçar, por meio de uma oração adjetiva explicativa.
No entanto, quando há mais de um antecedente, ou quando o que não está junto de seu antecedente, pode
ocorrer ambiguidade, vejamos abaixo algumas formas de resolver essa
ambiguidade.
Segundo Evanildo Bechara, em seu livro Moderna Gramática da
Língua Portuguesa:
Posição do relativo – Normalmente o que vem junto do seu
antecedente; quando isto não se dá e o sentido da oração periga, desfaz-se a
dúvida com o emprego de o qual, de e este ou se repete o antecedente, ou se põe
a vírgula para mostrar que o relativo não se refere ao antecedente mais
próximo:
“Mas ele tinha necessidade de sanção de alguns, que [isto é,
sanção e não alguns] lhe confirmassem o aplauso dos outros” [MA. 1, 138].
“Arrastaram o saco para o paiol e o paiol ficou a deitar fora” (CN. 1, 12].
Poderia também dizer o autor:
Arrastaram o saco para o paiol que ficou a deitar fora.
Arrastaram o saco para o paiol o qual ficou...
Arrastaram o saco para o paiol e este ficou...
Note-se como Camilo evita o equívoco nesta passagem:
“Eu de mim, se não estivesse amortalhada no sobretudo do meu
marido, que vou escovar [o sobretudo], era dele, como a borboleta é da chama...”
[CBr. 12, 18 apud MBa 5, 303].
Carlos Nougué, em seu livro Suma Gramatical da Língua
Portuguesa, explica que:
Nas orações ADJETIVAS EXPLICATIVAS, o que pode
substituir-se pela locução o qual (a qual, os quais, as quais):
O o desta locução é, ele mesmo, diacrítico: surgiu
para evitar ambiguidade com respeito a gênero.
O autor desta obra, o qual só obteve
reconhecimento tardio...
Atente-se porém à razão por que se usa aqui tão corretamente
o qual em lugar de que: se se pusesse que, hesitar-se-ia
quanto ao antecedente: esta obra ou o autor? Por isso julgamos de
todo procedente a seguinte regra: reserve-se o qual (a qual, os
quais, as quais) para os casos em que possa dar-se o menor grau de
ambiguidade (em especial quando o relativo se refere a antecedente distante), a
menor dificuldade de compreensão imediata ou ainda qualquer necessidade
de ênfase, e use-se o que nos demais casos:
CERVANTES, que nasceu no século XVI...;
Multiplicavam-se as corruptelas no LATIM VULGAR falado na
península, o qual já havia muito vinha diversificando-se em vários dialetos;
Era HERANÇA dos avós, a qual era preciso salvar;
Mas os poetas têm
“direitos” próprios, decorrentes de sua mesma arte, na qual não se cingem
necessariamente às regras gramaticais [aqui se trata de pura necessidade de
ênfase];
OBSERVAÇÃO.
Quando se trata de orações adjetivas restritivas, como não se pode recorrer a o
qual para resolver a dificuldade, muitas vezes se faz necessário dar outro
torneio à frase. Ponha-se o seguinte exemplo: “Estive na escola da cidade que
fora fundada no início do século”. Se o antecedente pretendido é cidade e
esta não tem senão uma escola, então a frase está corretamente construída. Se
porém o antecedente pretendido é escola e esta não é a única da cidade,
escreva-se então algo como Na cidade, estive na ESCOLA que fora fundada no
início do século. Cada caso, todavia, será singular e, portanto, haverá de
resolver-se singularmente.
Veja a seguir, a resposta dada no site Ciberdúvidas da
Língua Portuguesa à dúvida de um consulente, o qual gostaria de saber se a vírgula colocada após a palavra “corpo”, nos versos abaixo, esclarece que se está referindo ao fogo que aquece e não o corpo.
«Sigo o fogo do teu corpo,
que aquece a noite
e dissipa a cerração.»
que aquece a noite
e dissipa a cerração.»
A colocação de vírgula proposta na pergunta não surte o
efeito pretendido pelo consulente. Na verdade, com vírgula ou sem vírgula, é
sempre ambígua a relação de que com o antecedente: este tanto
pode ser fogo como corpo. A única coisa que a
vírgula pode fazer é transformar a oração (ou frase) relativa restritiva
introduzida por que em oração apositiva. De resto, a
ambiguidade mantém-se.
Podemos construir casos semelhantes, como os das seguintes
frases:
(1) Traz-me o casaco do teu irmão que está na sala.
(2) Traz-me o casaco do teu irmão, que está na sala.
(2) Traz-me o casaco do teu irmão, que está na sala.
Em (2), a vírgula só indica que a oração relativa é
apositiva, acrescentando informação à subordinante, em contraste com a ausência
de vírgula em (1), em que ocorre uma relativa que restringe o significado do
constituinte “o casaco do teu irmão”. De todos os modos, o pronome relativo não
define com clareza se o “que está na sala” é “o teu irmão” ou “o casaco do teu
irmão”.
Voltando aos versos da pergunta, o autor poderia ter escrito
”Sigo do teu corpo o fogo/ que aquece a noite...”, recorrendo a uma inversão na
ordem dos constituintes, isto é, deslocando o modificador preposicional de nome
para esquerda. Assim, conseguir-se-ia perceber o que ele pretende.
Para terminar, a explicação de María Marta García Negroni em
seu livro El arte de escribir:
Delante de un que especificativo cuando está
separado de su antecedente, particularmente si también puede funcionar como
antecedente el sustantivo inmediatamente anterior. Ejemplo:
Aerolito es un fragmento de un bólido, que cae
sobre la tierra. (Si se suprime la coma, el que cae puede ser el bólido)
En todos los casos en que es necesario indicar que
un elemento se relaciona no con la palabra inmediatamente precedente sino con
otra más alejada o con todo el enunciado. Ejemplos:
Obligó a Pedro a hablar, con habilidad.
Cfr.: Obligó a Pedro a hablar con habilidad.
Para que no se desvíe, en su elección, de las
normas señaladas.
Cfr.: Para que no se desvíe en su elección de las
normas señaladas.
Logró su objetivo, felizmente.
Cfr.: Logró su objetivo felizmente.
Referências:
Moderna Gramática Portuguesa, de Evanildo Bechara.
Suma Gramatical da Língua Portuguesa, de Carlos Nougué.
Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
El arte de escribir, de María Marta García Negroni.
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