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domingo, 11 de setembro de 2016

Entrevista a Paulo Henriques Britto, em Cadernos de Tradução da UFSC

Caros leitores,

Quando o assunto é tradução literária, o livro de que mais gostei e com cujas posições mais me identifiquei é A tradução literária, de Paulo Henriques Britto. Há tempo tinha vontade de entrevistá-lo, mas nesta semana chegou a minha caixa de e-mails a notícia da publicação da nova edição dos Cadernos de Tradução da UFSC, v. 36 n. 3 (2016), onde encontrei esta maravilhosa entrevista feita pelo professor Gilles Jean Abes ao renomado tradutor. Minha única interferência foi adicionar a foto do tradutor, retirada de um artigo da versão eletrônica do jornal Folha de S. Paulo, como se indica mais abaixo. O texto da entrevista foi reproduzido integralmente conforme publicado na revista.

Achei esta entrevista excelente, pois aborda de forma muito elucidativa assuntos polêmicos como original versus tradução, fidelidade, visibilidade, teoria da morte do autor, domesticação, adaptação, etc., temas que me inquietaram muito durante minha formação. Sem dúvida, eu não teria conseguido fazer uma entrevista tão reveladora, por isso, contentei-me em pedir a autorização do tradutor e a da Editora chefe da revista, a professora Andréia Guerini, para publicar a entrevista aqui no blog. Expresso a ambos meus sinceros agradecimentos.

Espero que desfrutem da leitura tanto quanto eu.

ENTREVISTA COM PAULO HENRIQUES BRITTO

 Paulo Henriques Britto é professor de tradução, de criação literária e de literatura na PUC-Rio, além de ser um tradutor e poeta premiado. É responsável por mais de cem publicações, dentre as quais muitas obras de ficção, mas também de poesia. Uma de suas traduções mais recentes é Grandes esperanças, de Charles Dickens (2º lugar no prêmio Jabuti em 2013), publicada pela Companhia das Letras. Já traduziu Elizabeth Bishop, Wallace Stevens, D. H. Lawrence, Henry James, William Faulkner e Lord Byron, dentre os autores mais famosos. Publicou seis livros de poesia, pelos quais recebeu importantes prêmios literários: Liturgia da matéria (1982); Mínima lírica (1989); Trovar claro (1997, Prêmio Alphonsus de Guimaraens); Macau (2003, Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira e Prêmio Alceu Amoroso Lima); Tarde
(2007, Prêmio Alphonsus de Guimaraens); e Formas do nada (2012, 8º Prêmio Bravo! Bradesco Prime de Literatura, Melhor Livro). Como tradutor, recebeu em 1995 o Prêmio Paulo Rónai da Fundação da Biblioteca Nacional pela sua tradução da obra A
mecânica das águas, de E. L. Doctorow. Publicou ainda o livro de contos Paraísos Artificiais, também pela Companhia das Letras, em 2004, além de numerosos artigos científicos. Sua obra A tradução literária recebeu, em 2013, o Prêmio Mário de Andrade de Ensaio Literário.

Gilles Jean Abes
Universidade Federal de Santa Catarina 

Cadernos de Tradução (CT): Em seu livro A tradução literária, cujas reflexões gostaria  de debater nas perguntas a seguir, você sustenta várias posições sobre tradução que podem gerar polêmica ou reações adversas, assim como estimulam uma reflexão sobre a tradução de literatura. Uma delas é a importância do original.
O que seria esse texto original, principalmente se pensarmos nos manuscritos de Shakespeare, frequentemente citados para desvalorizá-lo?

Paulo Henriques Britto (PHB): Há nessa argumentação uma falácia óbvia, muito comum nos que defendem posições radicais na área dos Estudos da Tradução. Vou começar com um exemplo. De vez em quando nasce um hermafrodita em algum lugar do mundo – uma criança com órgãos genitais masculinos e femininos. Uma pessoa assim é difícil de classificar como homem ou mulher, sem dúvida. Devemos concluir que a categorização dos seres humanos como masculino e feminino é uma criação cultural totalmente arbitrária, que deve ser desconstruída? Ora, basta pensar por alguns instantes para concluir que tal conclusão seria injustificada: é só lembrar que os homens não ovulam nem engravidam e as mulheres não produzem sêmen, que para a imensa maioria da humanidade faz sentido dizer que há pessoas que ovulam e potencialmente engravidam – mulheres – e outras que produzem sêmen – homens. A existência de alguns hermafroditas não altera este fato incontestável. De fato, existem vários textos diferentes que podem ser tomados como originais do Hamlet; por outro lado, há um único texto para os Sonnets de Shakespeare, e casos semelhantes ao dos Sonnets constituem a imensa maioria. Do mesmo modo, basta pensar por alguns instantes para vermos que a distinção entre original e tradução não é de todo arbitrária. Eis uma diferença: periodicamente tradutores brasileiros e portugueses realizam novas traduções dos Sonnets, ou de uma das versões do original do Hamlet; mas duvido que alguém possa citar um único caso de uma tradução brasileira ou portuguesa do Hamlet ou dos Sonnets que tenha sido usada para elaborar uma tradução para um terceiro idioma. As traduções só servem de base para outras traduções no caso muito específico em que, na cultura-fonte, não há traduções do idioma em questão.
Assim, por muito tempo as traduções brasileiras de Dostoiévski eram baseadas em versões francesas; mas tão logo surgiram bons tradutores do russo no Brasil passou-se a traduzir Dostoiévski diretamente do russo, e parece bem pouco provável que no futuro alguém no Brasil use versões francesas ou inglesas como ponto de partida para traduções de Dostoiévski. Assim, o argumento que supostamente reduz a distinção entre original e tradução a um preconceito logocêntrico é duplamente falho: primeiro, porque toma um caso excepcional para a partir dele fazer uma generalização; e segundo, porque ignora as diversas características que de fato distinguem original de tradução na cultura ocidental. Observe-se que a posição que defendo nada tem de essencialista: não estou dizendo que há diferenças essenciais entre textos ditos originais e textos resultantes de operações tradutórias. Afirmo apenas que, no atual momento da cultura ocidental, original e tradução têm características específicas que nos permitem definir essas duas categorias de modo que uma se oponha à outra. Nada impede que em outras culturas, ou que num outro momento da nossa, as coisas se deem de modo diferente.

CT: Esse apagamento do original não teria uma relação com a “morte do autor”? Seria a vereda correta a tomar, para dar visibilidade ao tradutor, a de aniquilar original e autor?

PHB: Quando, no cinema, se fala em dar visibilidade ao roteirista, o que se pretende é valorizar o trabalho do roteirista enquanto roteirista: isto é, dando-lhe crédito adequado. Se um roteirista exigir que lhe deem coautoria na direção do filme, ou que um close-up de seu rosto apareça no meio do filme, ou que seja criada uma cena musical em que ele cante e sapateie, certamente não será atendido.
Dar visibilidade para o tradutor significa estampar seu nome na página de rosto, ou na quarta capa, ou até mesmo na capa do livro, com uma fonte de tamanho razoável. Se o tradutor achar que isso é pouco, então que reivindique espaço no paratexto: introdução, prefácio, posfácio e notas. Mas o tradutor não tem o direito de alterar o enredo do livro por achá-lo pecaminoso, nem de colocar todas as ocorrências da palavra “Deus” no feminino para registrar seu repúdio da falocracia judeu-cristã, nem de incluir trechos em gíria contemporânea na tradução de uma obra do século XIX para lembrar o leitor desavisado de que o livro foi traduzido no século XXI. Os lugares para o tradutor aparecer são esses que citei acima: capas e paratexto. Apagar as fronteiras entre o autor e o tradutor é um tiro no pé, porque nega a especificidade do trabalho do tradutor.
Quanto à ideia de morte do autor, Barthes estava simplesmente criticando uma forma de crítica literária que ainda se fazia naquela época, a qual tentava explicar a obra do autor através de informações biográficas, ou tentando descobrir suas verdadeiras intenções por trás do texto. Que eu saiba, Barthes não estava dizendo que a linguagem atua espontaneamente, que os livros se escrevem sem intervenção do autor. Aos teóricos que afirmam que a linguagem escreve por conta própria, seria lícito pedir-lhes que não cobrasse direitos autorais de suas obras nem exigisse que lhe fosse dado crédito pelas ideias nelas expostas. E se aqueles que alegam que escrever e traduzir são exatamente a mesma coisa realmente acreditam no que dizem, deveriam dividir irmãmente os direitos autorais com seus tradutores.

CT: Um texto literário pode ter várias edições, com alterações feitas inclusive pelo próprio autor. Nesse sentido, o original é visto como um tipo de rascunho (Borges), ou seja, um texto passível de diferentes versões, nunca completamente finalizado. Essa atitude do autor, que busca aperfeiçoar ou alterar, sempre insatisfeito e retomando sua obra, não acaba dando espaço para que alguns teóricos da tradução desvalorizem o original, afirmando que é um simples rascunho, texto perfectível pelo tradutor que poderia corrigir erros e problemas, «melhorar a obra», para assim valorizar o seu ofício?

PHB: Na nossa cultura, considera-se que o autor tem o direito de retomar sua obra e mudá-la a seu bel-prazer. Assim, Henry James fez uma revisão minuciosa de seus principais escritos para incluí-los na New York Edition de sua obra completa. Também
Wordsworth reescreveu seus poemas de juventude na velhice. A maioria dos estudiosos aprova as versões finais de James e critica as reescritas de Wordsworth, mas o fato é que o autor tem esse direito. Por outro lado, como vou desenvolver mais adiante, o que se pede ao tradutor é que produza uma espécie de pastiche de uma obra em outro idioma cuja leitura de algum modo possa ser considerada um substituto válido para a leitura do original.
Portanto, de modo geral não se considera que caiba ao tradutor melhorar uma obra segundo seus próprios critérios de qualidade, que podem ser muito diversos dos do autor do original. Agora, tanto a primeira versão publicada de um romance de James quanto a versão incluída na New York Edition podem ser tomadas como originais pelo tradutor. O fato de haver mais de um original possível para o mesmo romance de James não abala de modo algum o conceito de original; decorre apenas do fato de o autor ter plenos direitos sobre sua própria obra. E, se o autor pode tentar melhorar sua própria obra, por que o tradutor não pode? Porque o leitor que compra um romance de James está interessado em se aproximar o máximo possível do texto de James, e não de uma versão que o tradutor considere uma versão melhorada de James.
De novo, não há nenhum essencialismo nisso: é apenas uma decorrência de como nossa cultura atualmente concebe autoria e tradução. No passado, era muito comum os tradutores se arrogarem o direito de melhorar os textos; hoje isso já não ocorre. É perfeitamente possível que no futuro isso mude, como é perfeitamente possível que em culturas muito diferentes da ocidental as coisas se deem de modo diverso. As regras do jogo da tradução, como as de qualquer outro jogo, estão sempre mudando, e não são as mesmas em todos os lugares. Mas o fato de essas regras não serem fixas e imutáveis não quer dizer que qualquer tradutor ou estudioso da tradução tem o direito de mudá-las a seu bel-prazer.
As regras do futebol são criações culturais que podem mudar, e de fato mudam, ao longo do tempo, mas nem por isso um jogador pode decidir pegar uma bola com a mão no meio de uma partida: ele levará cartão vermelho, com toda razão.

CT: Pensando aqui na dupla tradução de Maurício Cardozo da novela de Theodor Storm, Der Schimmelreiter (O centauro bronco e A assombrosa história do homem do cavalo branco), o que você entende por fidelidade?

PHB: Maurício produziu duas obras distintas: uma tradução de uma novela de Storm e uma narrativa de sua autoria, um pastiche muito criativo inspirado em Storm, Guimarães Rosa e outros autores.
O centauro não é tradução tal como o termo é entendido no mundo ocidental nos últimos cem anos, no mínimo.

CT: Você não acha que a (re)encenação dessa novela no quente e seco sertão, ao invés do cenário frio e úmido da Frísia (norte da Alemanha), problematiza o conceito de fidelidade já que, ao meu ver, elementos cruciais da novela são recriados na versão do sertão?

PHB: Sem dúvida, muita coisa da Odisseia está no Ulisses, mas não conheço ninguém que considere Joyce tradutor de Homero.
Isso em nada afeta as questões de fidelidade das traduções da Odisseia, que nada têm a ver com o romance de Joyce.

CT: Dando continuidade a esta problematização, não poderíamos distinguir uma leitura possível da obra, consciente, com um verdadeiro projeto de tradução, a exemplo do trabalho de Maurício Cardozo, de uma tradução etnocêntrica que desloca espaço, cultura e linguagem de forma inconsciente ou por causa de um leitor supostamente incapaz de acolher o Outro?

PHB: De novo, para mim, a questão é bem mais simples: A assombrosa história é uma tradução de Storm, e O centauro é uma obra original de Maurício. Não é apenas uma opinião minha: é assim que a imensa maioria dos leitores no mundo ocidental encara a questão.
Ninguém que leia um romance passado no Nordeste brasileiro acredita estar lendo a tradução de um romance passado na Frísia.
As regras que regulam o uso do conceito “tradução”, na nossa cultura e nosso tempo, não admitem que O centauro seja considerado uma tradução da obra de Storm. Já uma tradução de Storm que hoje em dia fosse considerada domesticadora continuaria sendo uma tradução, só que de uma espécie que hoje em dia a maioria dos leitores mais sofisticados rejeita. Para dar um exemplo trivial: quando me propus a traduzir as Viagens de Gulliver, consultei uma ou duas traduções mais antigas e verifiquei que numa delas a linguagem utilizada continha muitas marcas do português brasileiro contemporâneo. Além disso, nela as medidas haviam sido convertidas ao sistema métrico — assim, a altura dos liliputianos era dada em centímetros, muito embora Swift tenha escrito num tempo em que ainda não havia sido inventado o sistema métrico. Na minha tradução, não apenas mantive o sistema de pesos e medidas original como também evitei usar palavras e estruturas sintáticas que não fossem comuns no português setecentista. Fiz isso por saber que o meu público – os leitores mais sofisticados do Brasil do início do século XXI – tendem (como eu próprio, na condição de leitor) a preferir traduções mais estrangeirizantes, que levem mais a fundo o propósito de criar no leitor a ilusão de que ele está lendo uma obra redigida em outro país e em outro século.

CT: Se admitirmos que a recriação de Cardozo mantém uma postura ética da tradução (Berman), ao resgatar essa luta do homem com a natureza e o homem (os desertos do sertão e do mar da Frísia, o coronel), o conceito de adaptação seria adequado ao seu trabalho?

PHB: Eu não diria que O centauro é sequer uma adaptação. Prefiro reservar o termo para coisas como uma versão do Hamlet para mangá, ou a telenovela Grande sertão: veredas baseada em Guimarães Rosa, ou o libreto da ópera de Bizet que Meilhac e Halévy criaram com base na novela de Mérimée. Também chamaria de
“adaptação” as versões de romances de Hugo e Dickens resumidas e facilitadas para leitores infantojuvenis.

CT: Você emprega os conceitos centrífugo e centrípeto para distinguir os processos criativos do autor e do tradutor. Poderia explicar essa diferença?

PHB: Toda obra de arte de algum modo parte de obras anteriores. Para usar um conceito de Harold Bloom, por trás de cada poema há um ou mais poemas anteriores, de um ou mais poetas fortes. O poeta mais jovem, para ele próprio tentar se afirmar como um poeta forte, precisa “matar” seu pai literário, e para isso ele conscientemente se distancia de seu modelo sempre que sente que a voz do poeta anterior está excessivamente presente em seu trabalho: é o movimento centrífugo (que pode não ocorrer se o poeta se contentar em ser um epígono assumido, é claro).
Já o tradutor, ao elaborar sua tradução, por vezes se deixa levar por uma solução atraente e, ao cotejar seu texto com o original, percebe que esta solução levou sua tradução para longe demais do original; assim, ele a corrige: trata-se do movimento centrípeto (que pode não ocorrer se o tradutor, influenciado por alguma teoria que negue a ideia de fidelidade, resolver que seu poema pode e deve ser melhor do que o original).
CT: Como você entende a importância da literariedade de um texto literário?

PHB: É importante que o tradutor identifique as características que tornam o texto que ele está traduzindo uma obra literária, que lhe conferem valor estético, e se concentre na tentativa de recriar essas características na língua-meta. Caso contrário, ele corre o risco de – para usar um conceito de Benjamin – traduzir de modo equivocado algo que não é essencial no original.

CT: De que maneira poder-se-ia identificar os “elementos cruciais” de uma obra que devem ser recriados, com alguma alteração, na tradução?

PHB: Lendo o original com muita atenção com base num conhecimento aprofundado dos recursos literários do idioma do original e da tradição a que ele se filia; e elaborando com muito cuidado a tradução, com base num conhecimento aprofundado dos recursos do idioma-meta e da literatura desse idioma.

CT: Como definiria essa vivência de uma experiência de ler o texto traduzido como se estivesse lendo o original? O que seria essa experiência?

PHB: É o que a maioria esmagadora dos leitores quer: ter a experiência mais próxima possível de ler o original – que na verdade está escrito num idioma que ele não conhece – na língua que ele de fato conhece. É isso que se exige do tradutor: produzir essa ilusão (para usar o conceito de Jiří Levý) no leitor, para que ele possa, mesmo sabendo que o texto em português que ele tem na mão não foi escrito por Rilke, suspender sua descrença (como diria Coleridge) e fazer de conta que está lendo Rilke. Mas é até mais que um fazer de conta: quem lê uma boa tradução de Rilke está mesmo, num certo sentido, lendo Rilke. Podemos dizer que, dado um texto T0 no idioma α, o trabalho do tradutor é produzir um texto Tt no idioma β tal que o leitor de Tt possa afirmar, sem mentir, que leu T0. Para que ele possa fazer tal afirmação, como observa Lefevere, ele tem de se fiar no depoimento de pessoas que, dominando tanto α quanto β, se prontifiquem a ler Tt e atestem que, de fato, a experiência de ler Tt corresponde de modo significativo, ainda que não integral, à experiência de ler T0.

CT: Você concordaria com a afirmação de que o tradutor está sempre presente na sua tradução?

PHB: Sim, é inevitável. É o tradutor que se responsabiliza por suas escolhas, que fatalmente são diferentes das que seriam feitas por outro tradutor. A boa tradução é aquela que o leitor inteligente reconhece como um bom texto no seu idioma e, com base nos depoimentos de pessoas que conheçam o original e o idioma original,
conclui que tem características que lhe permitem afirmar que, ao lê-la, está num certo sentido lendo também um texto num idioma que lhe é desconhecido. Se, por outro lado, o tradutor faz questão de criar efeitos de sua própria lavra, que não correspondem a nada que se encontre no original, o texto resultante, por melhor que seja enquanto texto, pode não ser considerado uma tradução propriamente dita. É o que parece ser o caso do Rubaiyat de Edward FitzGerald e dos poemas “chineses” de Ezra Pound. Essas são as regras do jogo da tradução, tal como ele é jogado atualmente no mundo ocidental. É claro que um tradutor pode criar regras diversas,
e propor “traduções” em que o tradutor faça as mudanças que julgue necessárias para melhorar o texto original, tornando-o mais edificante, menos sexista ou menos racista; só que a maioria esmagadora dos leitores não vai considerá-las traduções. Para retomar uma analogia que emprego no meu livro: posso resolver jogar uma versão do futebol em que o jogador tenha o direito de pôr a mão na bola, ou em que haja duas bolas em campo; mas ninguém, nem os torcedores nem a FIFA, vai aceitar que isso constitua futebol.
Eventualmente, os seguidores podem ganhar força e impor seu próprio jogo: foi mais ou menos assim que surgiram o rugby e o futebol americano. Mas esses jogos modificados não são mais o futebol de associação tal como é aceito consensualmente. Você pode até preferir um desses outros jogos, mas se insistir em dizer que está jogando futebol você vai passar por excêntrico, no mínimo. No mundo do esporte, ao contrário do que ocorre no mundo dos Estudos da Tradução, as pessoas levam essas coisas mais a sério.

Recebido em: 12/03/2016
Aceito em: 18/05/2016
Publicado em setembro de 2016


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