Fonte: http://panypeter.blogspot.com.br/ Simpático blog com receitas ilustradas |
Aparentemente traduzir receitas é fácil, afinal, é só
traduzir o nome dos ingredientes a forma de preparo e pronto!
— Ah, é?
Apesar de não ser minha especialidade, já traduzi algumas
receitas, cardápios e outros textos ligados à nutrição, e pude perceber o quão
complexa é essa tarefa, que implica uma série de aspectos, como: a) escolher o
estilo de abordagem; b) encontrar a tradução adequada para os nomes de
ingredientes regionais; c) identificar e encontrar informação sobre tecnicismos;
d) esquivar-se dos falsos amigos ou falsos cognatos; e) considerar as medidas e
equivalências; f) usar a criatividade para suprir lacunas em nomes de pratos e
receitas; g) considerar o público-alvo da tradução: Estados Unidos, Espanha,
América Hispânica?; h) cuidado
com as traduções literais; entre outros. Enfim, vamos por partes:
a) escolher o estilo de abordagem;
As receitas culinárias são textos instrucionais, ou seja, descrevem procedimentos para preparar uma iguaria, por isso é fundamental que o texto seja objetivo, claro, sucinto e que não permita ambiguidade. Ao traduzir uma receita para o espanhol, você pode escolher
entre: uma abordagem impessoal,
utilizando o pronome “se” e o verbo
em terceira pessoa (se corta en rodajas, se añade la leche, se deja
enfriar, etc.) ou usando o infinitivo (cortar en rodajas, añadir la
leche, dejar enfriar, etc.); ou uma abordagem pessoal, com os verbos em primeira pessoa do plural (cortamos
en rodajas, añadimos la leche, dejamos enfriar, etc.) ou conjugando
os verbos na segunda pessoa do singular do modo imperativo, “tú” (córtalo en rodajas, añade la leche, deja
que se enfríe, etc.), ou ainda, usando o pronome de tratamento “usted” (córtelo en rodajas, añada la
leche, deje que se enfríe, etc.). Muitas vezes essa escolha não
dependerá do tradutor, mas sim do cliente.
b) encontrar a tradução adequada para os nomes de
ingredientes;
Como se diz em espanhol “açaí”,
“paçoca de amendoim”, “tapioca”, ou então, como se diz em português "paella", "turrón", "gazpacho", etc.? Quando se trata de comidas típicas ou de ingredientes regionais, a melhor opção
é manter o termo original, acompanhado de uma descrição.
Exemplos:
“açaí”, fruto de una palmera silvestre brasileña
del cual se extrae un concentrado de color morado;
“paçoca de
amendoim”, golosina brasileña que se obtiene al
amasar harina de cacahuete con azúcar y manteca y que se deshace en la boca;
“tapioca”, es la fécula de la yuca, con la cual se suelen
hacer unas tortillas planas que se sirven con rellenos dulces o salados.
"paella", prato típico espanhol à base de arroz, açafrão e frutos do mar.
"turrón", doce tradicional espanhol em forma de tablete, feito de amêndoas, pinhões, avelãs ou nozes torradas e misturadas com mel e açúcar.
"gazpacho", sopa fria espanhola à base de tomate, pimentão, azeite, vinagre, alho e sal, típica de Andaluzia, região do Sul da Espanha.
Como deu para ver nem sempre é possível
descrever uma comida regional com poucas palavras.
Outros ingredientes ou nomes de comidas já são mais
conhecidos e até apresentam versões castelhanizadas, como por exemplo, a caipiriña e a picaña.
c) identificar e encontrar informação sobre tecnicismos;
Flambar (flambear, flamear), abafar (tapar), caramelizar (caramelizar, acaramelar), marinar (marinar), cozinhar em banho-maria (cocinar en baño maría), al
dente (é uma expressão italiana, não precisa traduzir), ao ponto (al punto), besuntar (untar), branquear (blanquear), calda em ponto de fio (almíbar en punto de hilo), etc. Todos esses termos constituem
tecnicismos, isto é, descrevem técnicas, procedimentos e aspectos
especializados que fazem toda a diferença e cuja tradução errada pode levar ao
fracasso da receita. Também é importante conhecer o nome dos instrumentos
utilizados: coador (colador), ralador
(rallador), funil (embudo), peneira (tamiz), processador (processador),
espremedor (exprimidor), moedor (picadora), pilão (mortero), espátula (espátula),
descaroçador (deshuesador), etc. As
variedades de arroz, massas, pães, farinhas e temperos, as formas e os pontos
de cozimento (jugoso, medio cocido o al
punto, bien cocido, etc.). Para encontrar a tradução desse tipo de termos,
devemos consultar literatura especializada: glossários e sites da área, livros
de receitas, dicionários ilustrados, etc.
Devemos considerar ainda as especificidades da língua-alvo.
Por exemplo, no Brasil o termo “fatia” se aplica tanto ao pão de forma quanto
ao pepino ou ao rosbife, já na Espanha, temos termos mais específicos para cada
um desses produtos, assim, diz-se “una rebanada de pan de molde”,
“una rodaja de pepino” e “una loncha de rosbif”.
Também é importante pesquisar os nomes dos cortes das
carnes, peixes, aves, etc. A picanha, por exemplo, é um corte de carne típico
brasileiro, em espanhol, chama-se “tapa
de cuadril”, mas também se usa a versão castelhanizada “picaña”. Na Argentina,
aprecia-se muito o “bife de chorizo”,
que é um corte tradicional retirado do miolo do contrafilé em fatias grossas de
aproximadamente 400 gramas.
d) esquivar-se dos falsos amigos ou falsos cognatos;
Vejamos uma pequena amostra de alguns falsos amigos
encontrados no âmbito gastronômico: aliñar
(condimentar), bizcocho (bolo
simples), tarta na Espanha ou torta na Argentina (bolo recheado ou
torta, é complicado!* veja a seguir a explicação detalhada), empanada
(pastel), pastel (bolo ou doces de confeiteiro mais elaborados), estofado (refogado), pasta (massa), postre (sobremesa), sobremesa
(tempo dedicado à conversa após a refeição), salsa (molho), exquisito
(saboroso), pelado (descascado), tapas (petisco), mala (ruim), copa (taça),
taza (xícara), vaso (copo), salada
(salgada), ensalada (salada), propina (gorjeta), berro (agrião), cacho
(pedaço), cubierto (talher), grasa (gordura), remover (mexer), rico (delicioso),
etc.
Observação: em espanhol se diz “olla a presión” e não “olla de
presión”; observar também os gêneros dos substantivos (o sal, em espanhol, é
uma palavra feminina: la sal).
Gramas, em espanhol, são gramos; e quilos,
geralmente se escreve com ‘k’, kilos. Embora, existam as duas
formas, com k e com q, recomenda-se usar a forma com ‘k’.
*A discussão sobre “tarta”, “pastel” e “torta”
é bastante complicada... basicamente na Espanha se chama “tarta” tanto nosso bolo
recheado (ex.: bolo de morango com nata) quanto nossa torta de massa fina
assada recheada com creme (ex.: torta de limão). Os bolos mais elaborados ou os
doces de confeitaria (ex.: com massa folhada) também podem ser chamados de pasteles.
Já na Argentina, Uruguai e Paraguai, a “tarta” chama-se “torta”
; e os “pasteles”, “masas
finas”. No Uruguai e na Argentina também existe a ‘torta frita’ que é
uma espécie de panqueca achatada frita polvilhada com açúcar servida para
acompanhar o “mate” (chimarrão). Outra diferença é que em Uruguai, Argentina
e Paraguai chama-se “crema de leche” o que os espanhóis
chamam “nata”. Assim, o nosso “bolo
de morangos com nata” seria “tarta de fresas con nata” na Espanha,
e “torta
de frutillas con crema” em Argentina, Uruguai e Paraguai. Complicado,
não?
e) considerar as medidas e equivalências;
Felizmente hispanófonos e lusófonos usam o mesmo sistema de
medidas, mesmo assim, é importante observar a tradução dos utensílios e parâmetros
utilizados como medidas: cucharita,
cuchara sopera (cucharada), cucharón, taza, vaso, botella, una rama, una pizca,
etc.
Um exemplo de medidas que devemos adaptar na tradução de receitas do português ao espanhol são as referências que usamos, se você traduzir literalmente ao espanhol "uma colher de sopa de alho desidratado", ou seja, "una cuchara de sopa de ajo deshidratado", eles vão achar que é para adicionar uma colher de "sopa (caldo) de alho desidratado", porque em espanhol não seu usa essa expressão, mas sim "una cuchara sopera", ou ainda, "una cucharada".
f) usar a criatividade para suprir lacunas em nomes de
pratos e receitas;
Como traduzir, por exemplo, “pavê nevado” ao espanhol, sendo
que não existe o substantivo “pavê” nem o adjetivo “nevado” para referir-se à
cobertura de claras em ponto de neve? Use a criatividade e procure um nome que seja
ao mesmo tempo descritivo e apetitoso. Uma vez que você leia a receita e
conheça os ingredientes, poderá encontrar uma solução como “Torta
helada/Postre de galletas de champaña cubierta con merengue”.
Ou para traduzir nomes de pratos: Ensalada de escarola con
ventresca de bonito y romesco (salada de
endívia com barriga de atum e romesco); Montadito con chorizo y
tortilla española (aperitivo de linguiça defumada, servida sobre torrada e omelete de batatas fritas).
g) considerar o público-alvo da tradução: Estados Unidos,
Espanha, América Hispânica?
Ao traduzir para o espanhol é fundamental ter em conta os
destinatários do texto-alvo. Vejamos, por exemplo, alguns termos do âmbito
culinário que possuem versões diferentes na Espanha e na Argentina.
Como a culinária é parte inerente da cultura de uma comunidade, também vale
a pena informar-se sobre as comidas típicas e os hábitos alimentares dos países em questão, por
exemplo, na Espanha é comum o consumo de carne de coelho e frutos do mar, também tem forte influência da culinária árabe, os horários das
refeições são diferentes (almoço entre 14 h e 15 h /jantar às 22 h), a
culinária argentina tem forte influência italiana e também consome muita carne
bovina e, assim como os brasileiros, apreciam o churrasco especialidade da gastronomia gaúcha. O churrasco é temperado com “chimichurri”,
um molho bem temperado à base de salsinha, orégano, alho, vinagre, pimenta
calabresa, azeite e sal. Esse molho também serve para temperar o “choripán”, linguiça assada servida no
meio do pão, etc.
Espanha = Argentina (Brasil).
barbacoa = asado a la
parrilla (churrasco);
plátano = banana (banana);
fresa = frutilla (morango);
guisantes = arvejas (ervilhas);
maíz = choclo (milho);
melocotón = durazno (pêssego);
nata = crema de lecha (creme de leite);
piña = ananá (abacaxi);
judías = frijoles, porotos (feijão);
cacahuete = maní
(amendoim);
patatas = papas (batatas);
calabaza = zapallo (abóbora);
cruasán ou “croissant” = medialuna (croissant);
refresco = gaseosa (refrigerante);
zumo = jugo (suco);
tarta = torta (bolo recheado);
lima = limón (limão); etc.
lima = limón (limão); etc.
h) cuidado
com as traduções literais.
Nunca é demais lembrar o perigo de traduzir literalmente,
palavra por palavra. A “castanha do Pará”, por exemplo, não é “castaña del Pará”, mas “nuez del Brasil”; por outro lado, a
“castanha de caju” não é “nuez del caju”, mas “anacardo”. Assim como "cheiro verde" não é "olor verde", mas "perejil". A tradução de "niños envueltos" também não é "crianças embrulhadas", mas "charuto de carne", que pode ser enrolado com folha de repolho, ou parreira, segundo a tradição árabe. "Cupim ao molho madeira", em espanhol, não é "Termita en salsa madera", apesar de a "termita" ter tudo a ver com madeira... O cupim é outro corte de carne tipicamente brasileiro — a corcova do gado zebu —, e poderia ser traduzido como "joroba" ou "giba", mas sugiro deixar "cupim" como referência e acrescentar a descrição.
Tenho uma duvida: para falar sobre receitas culinárias utilizo tu ou usted? Obrigada
ResponderExcluirVai do gosto do freguês, ou do cliente. Você pode usar o tratamento informal "tú" ou formal "Usted", usando os verbos no imperativo "córtela/córtala en tiras", ou ainda, o infinitivo "cortar en tiras, pelar, remover, probar...", etc.
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