domingo, 3 de janeiro de 2016

A contribuição da tradução para a consolidação do castelhano

Assim como a tradução da Bíblia por Martinho Lutero foi fundamental para a consolidação do alemão, o movimento de tradução que se deu na Espanha, principalmente em Toledo e Sevilha, no século XII pelos latinos e no século XIII pelos alfonsíes foi fundamental para a consolidação do castelhano. Os possíveis fatores que contribuíram para esse movimento de tradução foram a pluralidade linguística e multicultural, pois nessa época conviviam na região árabes, judeus e hispanos, e com eles, três religiões distintas: islamismo, judaísmo e cristianismo.

O árabe era falado entre os muçulmanos cultos, e o romance, língua vernácula derivada do latim, era falado pelas classes populares (com a invasão romana da península, a partir de 218 a.C. até o século IX, a língua falada na região era o romance, uma variante do latim que constitui um estágio intermediário entre o latim vulgar e as línguas latinas modernas —português, castelhano, francês, etc.). O clero falava e escrevia em latim. As línguas vernáculas coexistiam com as línguas cultas exercendo cada uma suas respectivas funções.

No século XII, as traduções são patrocinadas pela Igreja, as traduções eram feitas pelos latinos, especialistas nas matérias traduzidas, mas que não eram completamente especialistas em línguas. O clero busca a consolidação da fé cristã, assim, as traduções passam pela censura, e algumas obras consideradas pagãs são traduzidas somente com o objetivo de criticá-las e aniquilá-las. Traduzia-se do árabe ao latim, os arabistas davam uma versão oral em língua vulgar — romance —, e o latinista traduzia essa versão oral ao latim. Assim, aquele que escrevia a tradução não conhecia necessariamente a língua de partida.

Durante o século XIII, apesar de ser uma época de extrema intolerância e violência — com a Inquisição e as Cruzadas — o rei Afonso X, conhecido como “o sábio”, estava interessado no conhecimento e em promover o desenvolvimento cultural da Espanha.  

Afonso X, el Sabio
Afonso X patrocinou a Escola de Tradutores de Toledo — uma academia onde judeus, muçulmanos e cristãos podiam trabalhar juntos—, e para facilitar seu trabalho, o  rei fundou uma das primeiras bibliotecas do mundo mantidas pelo estado. O rei escolhia os tradutores e as obras a serem traduzidas, revisava as traduções, promovia debates intelectuais e patrocinava a criação de novas obras.

Eruditos muçulmanos já haviam traduzido para o árabe as obras mais importantes das civilizações grega, indiana, persa e síria. Esse conhecimento ajudou os muçulmanos a se desenvolver nas áreas de matemática, astronomia, história e geografia. A Escola de Toledo procurou explorar esse conhecimento traduzindo importantes escritos árabes principalmente ao romance.

Com Afonso X, o latim, a língua da Igreja, perde seu monopólio de língua do saber. Afonso queria que aquelas traduções fossem entendidas pelo povo em geral. Essa iniciativa fez com que o idioma castelhano se tornasse uma língua científica e literária. Assim, conseguiu-se mudar o conceito geral de que o latim era a língua culta.

Os tradutores alfonsíes adotaram diferentes formas de tradução: tradução ao romance, retradução e adaptação. Afonso X deu grande importância ao trabalho de tradução dos judeus, pois estes não eram especialistas somente em matérias, mas também em línguas. Era um trabalho muito árduo, já que nessa época os tradutores não contavam com obras de referência como dicionários e enciclopédias e raramente tinham acesso aos originais.

As traduções alfonsíes desempenharam um importante papel na constituição da língua castelhana, criaram terreno para a criação de uma literatura nacional e para a consolidação da soberania nacional com a escrita da Historia general de España, bem como no desenvolvimento de um pensamento religioso que começa a se distanciar do clero através da tradução do Velho Testamento pelos tradutores judeus.

Assim, a tradução foi responsável pela produção textual, pois além de transferir textos de uma língua a outra, trouxe também para a língua-alvo novos procedimentos estilísticos, modelos narrativos, critérios estéticos, bem como novas noções literárias, científicas y filosóficas. A tradução também enriqueceu sobremaneira o léxico do castelhano, pois além dos empréstimos e transliterações, foram criados inúmeros neologismos para dar conta das novidades científicas e culturais que a língua vernácula não tinha até então.

Os trabalhos latinos e alfonsíes abriram caminho para o que hoje é a civilização ocidental. Desenvolveram no leitor da Idade Média novos hábitos linguísticos, levando-os a pensar, sentir, escrever e agir segundo as noções e conceitos da língua-fonte, integrando-os a seus próprios esquemas de pensamento.

Os erros que por vezes surgiram em textos traduzidos duas vezes, do árabe para o castelhano medieval, e deste para o latim, eram insignificantes em comparação com gloriosa missão cumprida de ponte cultural.

Fontes:
FILOSOFÍA E HISTORIA EN LA PRÁCTICA DE LA TRADUCCIÓN - Martha Lucía Pulido Correa.
Pequena história das grandes nações – Espanha – Otto Zierer.
A busca de um rei pela sabedoria – Despertai!, 2007.

Nenhum comentário:

Postar um comentário