quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O popular e o regional na linguagem



Recentemente estive no Paraguai, terra em que morei de 1980 a 1983, quando ainda era governada por um ditador, embora isso não venha ao caso, já que aqui o foco é outro: a variedade linguística.


Como eu ia dizendo, fiz uma pequena viagem de aproximadamente 80 km de ônibus para resolver uns assuntos pessoais e gostaria de relatar aqui minhas impressões linguísticas. Não pude deixar de me encantar com as palavras e expressões que chegavam a meus ouvidos, olhos e memórias ao longo do percurso, muitas delas me levaram a uma viagem no tempo, de volta à época de meus 6 a 9 anos de idade.


Alguns estudiosos da língua veem o popular e o regional como algo nocivo, algo que corrompe a língua-padrão e a condena à deriva. Não sei até que ponto isto é verdade, mas o certo é que a língua vai se transformando com o uso, isso é inevitável, especialmente a linguagem falada que é como um cavalo "chucro" que não se sujeita às rédeas da norma. Polêmicas à parte, não há como negar que a linguagem popular e regional tem seu encanto, já que é ela que reflete a idiossincrasia do local e de sua comunidade. Obviamente essa linguagem deve ser usada somente na informalidade e não em textos formais ou oficiais, mas nem por isso ela deve ser banida do cotidiano, trata-se mais de uma questão de identidade.


Na América Latina se fala o espanhol ou o castelhano — como queiram —, é uma língua comum, mas cada local tem seu vocabulário, seu sotaque e, até mesmo, suas regras próprias e únicas e é isso que torna essas variantes especiais.


O feijão é o mesmo, mas cada um o prepara com seu tempero e, ainda assim, ele não deixa de ser feijão. Eu diria que os regionalismos são como o tempero da língua…



Chipa Paraguaya
Bom, voltemos ao caso em questão. Estava eu no ônibus, quando entra uma moça vendendo “chipa”, uma espécie de pão de queijo assado em forma de rosca feita à base de amido de mandioca e queijo. É claro que eu comprei! É verdade que nós duas nos atrapalhamos um pouco na hora de calcular o câmbio de real para “guaraníes”, mas tudo deu certo e as chipas estavam deliciosas… Por todas as partes havia pessoas tomando “tereré” (mate frio), e pessoas vendendo “yuyos” (ervas com propriedades medicinais) para colocar na água do mate.


Enquanto eu viajava, ia me lembrando dos tempos em que estudei no Paraguai. No recreio, comprávamos  “pororó” (pipocas) e outras guloseimas.


Todos os dias, formávamos fila, tomávamos distância e cantávamos o hino nacional: A los pueblos de América, infausto: tres centurias un cetro oprimió, mas un día soberbia surgiendo…”. Meu uniforme era impecável: vestidinho, cintinho, gravatinha, meias brancas três quartos, mocasins pretos. Havia um costume constrangedor que era a revista de nossas cabeças para ver se tínhamos piolhos, várias vezes fui para a diretoria, por culpa dos malditos pediculídeos que insistiam em se "instalar" em nossas cabeças…

Bandeira Paraguaia


Eu me empolgo e acabo me esquecendo de falar das expressões e palavras peculiares, desculpem-me. Vejamos alguns “paraguayismos”:


ule” = sacola de plástico 

allá ité” = lá longe, união de español e guarani que proporciona mais intensidade à expressão
Chera´a = meu amigo

Argel” = pessoa desagradável, antipática
Mita´í” = palavra guarani que significa menino

Nderakore” = expressão de origem guarani usada em situações frustrantes 
¡A la pinta!= para expressar surpresa
De guaú” = de mentirinha, de bricadeirinha  
Pió” = usada em interrogações "¿Para qué pió?"
Na = usada em súplicas "¡Dale na!"
Nambrena” = palavra de origem guarani que expressa tédio ou admiração, segundo seu emprego 

Picó”, “¿Ya, te vas, picó? = expressão de origem guarani, “Pikó”, empregada em perguntas também

¡Chúlina!” = que fofo! 

 
A propósito, outra palavra que tem muitas variantes: a "mamadeira"; biberón (Espanha e Paraguai); mamadera (Argentina e Chile), mema (Uruaguai), mamila (México), pepe (Honduras), pacha (El Salvador e Nicarágua), o tetero (Colombia e Venezuela), chupones (Costa Rica)

Se tem algo de que os paraguaios devem se orgulhar é do fato de eles terem mantido o guarani como língua oficial, ensinada na escola e usada não somente no ambiente familiar, mas também na imprensa, literatura, TV e repartições públicas. Ao contrário do Brasil, que não preservou uma única língua indígena das tantas que por aqui existiam.

No Paraguai é natural ouvir as pessoas falarem o guarani incorporando palavras em espanhol, já que aquela, por ser uma língua mais elementar, possui um vocabulário mais restrito, essa mistura do espanhol e guarani recebe o nome de "jopará".

Vejamos, a seguir, um trecho de um diálogo da peça "Nuestra María y Nuestro José" da autoria de Victor J. Bogado A., divulgada no site www.portalguarani.com

 (...)
MARÍA: (Entra preocupada) José, viste piko como subió la bahía desde ayer ...¿no viste? Por eso todos ya se están yendo más arriba. Ña Pancha y eso ya se mudaron todos a la casa de su comadre...El río crece cada vez más y más... Mirá na esos camalotes... Quién sabe cuántas víboras ha de haber ahí...


JOSÉ: No te aflijas, María... ani reñekebrantá che ama... todo se va a solucionar con la ayuda de Dios...


MARÍA: Pero, José... mirána un poco, che karaí... no te digo que todos los vecinos ko ya se fueron... Dónde piko che Dios nos vamos a refugiar... sobre que mira na un poco, que yo ya estoy demasiado pesada... casi ya no aguanto más...
JOSÉ: No te preocupes tanto, mi hija... ya nos vamos a arreglar de alguna forma.
MARÍA: Hmmm... ¿Y cuando nazca nuestro hijo pa cómo nos vamos a arreglar? ¿De dónde vamo a sacar para comer? ¿Cómo piko nos vamos a mantener?... Nadie ko te va a traer trabajo aquí en medio del barro y el agua...
JOSÉ: Es posible, María... ¿cómo piko te vas a desesperar? Dios no abandona ko a los pobres... ya te olvidaste de lo que siem­pre nos dice el pa'i de la parroquia... ¿dónde está tu fe, che ama?
MARÍA: (Suspira.) Bueno, sí es cierto ...tenés razón, José... pero... tengo un poco de miedo, no más. (Llorosa.)
JOSÉ: Y yo soy fuerte y no le tengo miedo al trabajo ni a nada por el estilo. ¿Vos sabés luego, ajépa? (Le acaricia tiernamente.) Cualquier cosa ko voy a hacer, mi hija. Aní repená, che ama querida.
MARÍA: Sí, mi José pero... ¿Y si nos llega el agua de noche? ¿No pensaste piko en eso, che papá? ¿Y si nace mi bebé en medio del barro, los bichos y el agua sucia?
JOSÉ: (pensativo.) Sí, pensé... lo que pasa es que no sé dónde voy a dejar mis herramientas y mi tallercito... Upéa hína la che problema... ¿Y de qué piko vamos a vivir?
MARÍA: Te comprendo, che mena, pero pensá un poco en esta pobre criatura que está por nacer... Yo ya siento sus pataditas en mi barriga... A ver, tocá na un poco, parece que se mueve...

(...)

Um comentário:

  1. Seu texto me faz pensar em um monte de coisas: no uniforme que usava quando estudava o primário e também cantava o hino nacional no Brasil dos anos 70 que também era uma ditadura; na questão das línguas regionais, aqui na Alsácia é um grande orgulho, o alsaciano é vivo, dinâmico e incentivado.pelos governos locais, mas ele existe em paralelo à língua nacional que é o francês. E enfim, adoro esse tipo de assunto sobre culturas. Infelizmente não entendi a fineza das distinções no diálogo acima, estou pensando seriamente em voltar a aprender o espanhol.

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