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domingo, 7 de dezembro de 2014

Entrevista com a tradutora Raquel Cirne


Raquel Cirne é uma gaúcha residente em Málaga há 10 anos, licenciada em História e pós-graduada em Patrimônio Histórico. Tradutora, professora e bailarina. Na Espanha, realizou cursos de especialização em Educação e realiza cursos de formação em Tradução. Possui as certificações DELE C2 em Espanhol e Zertifikat Deutsch TELC B2 em Alemão. Tem experiência principalmente com as áreas de Turismo e Eventos, Marketing, Jurídica, Engenharia e Localização de Videogames, e tem especial interesse em trabalhar com as áreas de História, Cultura e Artes. É escritora do blog “El Tesoro de Palabras”.

Diana – Ser tradutor fazia parte de seus planos? Como foi que tudo começou?
Raquel Cirne – Oi Diana, muito obrigada pelo convite para compartilhar um pouco do teu espaço. Bueno, ¡vamos al lío! Formei-me em História nova demais, com 21 anos. Fui professora em duas escolas estaduais durante três anos. Nesse período, conheci o flamenco e me apaixonei profundamente pela língua e pela cultura espanholas, e senti que tinha que morar na Andaluzia, onde tive o privilégio de trabalhar profissionalmente com a dança, e também ministrava aulas de Português e Espanhol, em menor escala. Palavras e dança sempre andaram juntas na minha vida – e em todos os espetáculos que realizei havia texto, movimento e reflexão. Mas dançar exclusivamente ficou esgotante e precisei de uma pausa. Procurei uma nova área de atuação que pudesse conciliar com a dança. Comecei a faculdade de Turismo, comecei a estudar Alemão, morei um tempo na Alemanha onde trabalhei nesta área, mas não me identifiquei. Centrei-me no trabalho com os idiomas e voltei a dançar com um envolvimento mais leve. Tenho um casal de amigos tradutores muito queridos, que me deram valiosas orientações sobre a profissão, e descortinou-se para mim um mundo absolutamente fantástico no qual tudo encaixou. Meu primeiro trabalho remunerado como tradutora foi a versão de uma carta para o Alemão; pude enxergar a enorme importância desta atividade e senti que tinha descoberto o mapa do tesouro (do tesouro de palavras hehehe). Antes era tradutora de músicas para movimentos, agora comecei a usar as letras!!!

Diana - Quais as línguas que você traduz?
Raquel Cirne – Trabalho principalmente com Português e Espanhol (que já considero também língua materna) e com Inglês e Alemão (pela qual sou apaixonada).

Diana – Como sua formação em História e seu amor pelas artes influenciam seu trabalho como tradutora?
Raquel Cirne – Acredito que tanto a formação em História como a vivência artística treinaram em profundidade o olhar atento para os detalhes. Especificamente, penso que a História tenha desenvolvido também a análise do texto, dos contextos, das intenções do uso das palavras, das entrelinhas... A dança trabalha bastante a repetição, a paciência, a intuição, a imaginação, a busca pela forma perfeita. É provável que esses ingredientes tenham cozinhado uma tradutora bastante detalhista, que valoriza cada palavra, os conteúdos, mas também as formas; que pensa muito e que tem uma sensibilidade muito sensível hehehe. São Jerônimo foi historiador e tradutor. Realmente são atividades que compartilham o método de trabalho e que requerem algumas habilidades bastante similares.

Diana – Fale um pouco de sua paixão pelo flamenco, de onde surgiu tamanho encantamento e como mudou sua vida?
Raquel Cirne – Apaixonei-me pelo flamenco de maneira fulminante quando assisti ao filme “Bodas de Sangre”, de Carlos Saura, exibido em uma disciplina da faculdade. A beleza, a profundidade, a intensidade desta arte me deixaram atordoada. A partir de então, só pensava “nisso”, precisava morar na Andaluzia, dançava sem parar, e quanto mais estudava e aprendia sobre a história, a estrutura, os diferentes estilos, toda a linguagem própria, enfim; ficava mais fascinada. É extremamente complexo e majestoso, algo que podemos perceber quando se encontram o cante, o toque e o baile. Na verdade, salvou a minha vida. Minha mãe morreu duas semanas depois de eu começar a primeira aula de dança, e era só ali que conseguia me concentrar e não pensar nessa tragédia. O flamenco estimula uma postura mais altiva frente à vida, e também é um canal que consegue filtrar e transformar dores muito profundas. Durante muito tempo foi a expressão de povos marginalizados que se mesclaram e que conseguiram encontrar na Andaluzia o seu lugar; e que transformaram muitos sentimentos negativos em uma arte mundialmente apreciada.
Jabera Studio - diretora/professora Sandra Cisneros

Diana – Você conseguiu realizar o sonho de tornar-se uma dançarina de flamenco, que conselho você daria para aqueles que têm medo de correr atrás de um sonho?
Raquel Cirne – Bueno, é certo que consegui caminhar bastante, mas também tropecei e falhei muito, de modo que não sou assim nenhum Deepak Chopra hehehe. Mas poderia dizer que a morte tão prematura da minha mãe me mostrou que não se pode esperar para viver os sonhos, até mesmo porque isso foi o que aconteceu com ela. Passou toda a vida em um trabalho que não gostava e se aposentou com 49 anos. Estava cheia de planos, inclusive de fazer a faculdade de Artes Visuais, já que desenhava e pintava maravilhosamente e era o que mais amava. Mas ao invés de ir para a faculdade, foi para o hospital, com um câncer furioso e morreu com 51 anos. Não podemos nos dar o luxo de “esperar para viver” – quando tanta gente luta só para sobreviver. Mas o ensinamento também não precisa vir dessa forma tão dura. Estamos em um século privilegiado de circulação de ideias, de pessoas, de possibilidades, de encontros, de intercâmbios de todo o tipo – é só estender a mão. Muitas vezes dizem que Alemão é difícil; eu penso que é uma das coisas mais fáceis da vida. Correr atrás de um sonho exige muito esforço e muita renúncia, talvez por isso venha o medo; a infelicidade é mais segura e menos trabalhosa. Duas frases me acompanham sempre e podem ser úteis para outras pessoas. Uma, que li em um texto do Drummond: “somos do tamanho daquilo que vemos, e não do tamanho da nossa altura”. Outra, de uma música gaúcha do Leopoldo Rassier: “não podêmu sintregá prus hômi”. Assim como estas, há milhares de outras à inteira disposição!

Diana – Como é seu dia a dia?
Raquel Cirne – A minha rotina de trabalho não é fixa. Traduzo, algumas vezes ministro cursos de idiomas em empresas, também tenho alunos particulares, trabalho ocasionalmente em projetos de revisão e localização de videogames “in-house” (que são interessantíssimos), danço. Com menor frequência realizo trabalhos de interpretação. Também dou aulas de samba na minha escola de flamenco. É muito divertido, esse sim é o momento relax, e três das alunas são inglesas, muito legal. E por outro lado, está toda a parte da vida familiar.

Diana – De que você mais gosta em sua profissão?
Raquel Cirne – Trabalhar de maneira autônoma e com um horário bastante flexível na santa paz da minha casinha é um grande privilégio. Também considero muito positivo – e estimulante –  o fato de poder trabalhar “com o mundo todo”, encontrar situações novas mesmo dentro do mesmo tema, aprender tanto, e que o nosso trabalho seja tão útil e tão necessário. Gosto muito que seja um processo introspectivo e reflexivo.

Diana – Como surgiu a ideia do blog “El Tesoro de Palabras”?
Raquel Cirne – Um blog é uma vitrine importante para divulgar o nosso trabalho e estabelecer contatos. Mas queria também tratar sobre os idiomas através da perspectiva cultural, comentando suas histórias e as nossas histórias com eles, curiosidades, particularidades... e precisava de um nome que pudesse refletir um pouco esta intenção. Lembrei da palavra que fez com que eu admirasse ainda mais o Alemão: “Wortschatz”, que significa “vocabulário”. Mas a tradução literal é “Tesouro de Palavras” (Schatz, tesouro; Wort, palavra). Para mim é uma definição muito poética e muito acertada sobre o que realmente é o vocabulário, um tesouro de palavras. Peguei-a “emprestada” e foi também uma maneira de juntar os três idiomas que adoro: Português, Espanhol e Alemão.

Diana – Quais são seus projetos para o futuro?
Raquel Cirne – Estou caminhando para que minha atividade profissional principal seja a tradução, e quero centrar-me no par ESP<>PORT. A escola de flamenco que frequento está constituída como associação e realiza muitas atividades culturais, e estou começando a colaborar em algumas delas, (estoy flipando), e torço para que seja uma parceria bem longa!! Também gostaria de continuar participando dos projetos relacionados com os videogames, são muito criativos e interessantes.

Diana – Gostaria de compartilhar alguma situação engraçada, inusitada ou marcante relacionada a sua experiência no estrangeiro?
Raquel Cirne – Vou contar o “momento plim”, que deixou claro que o sonho tinha se materializado. Antes de vir, recortava e juntava tudo o que encontrasse sobre a Andaluzia, ficava horas olhando e imaginando. Mas tinha uma imagem que era particularmente especial, a “porta” de entrada para o Mercado de Artesanía, com estas palavras escritas em azulejos e em estilo árabe, em Granada. É uma rua mágica na qual há muitas lojinhas árabes bem juntinhas. Eu olhava, mas parecia que era em Marte. Depois de muitos anos, muito esforço e muita renúncia, eis que estava só a um oceano de distância. E quando passei por ela, fiquei hipnotizada. Essa sensação sempre se repete quando estou ali. Amo a Andaluzia e os andaluzes. Tudo aqui é mágico. Sem dúvida houve, e haverá, muitos momentos especiais e divertidos, mas o que marca mesmo é o carinho, a alegria e o respeito com o qual sempre fui tratada, nos momentos mais cotidianos... Encontrei valiosas oportunidades profissionais e pessoas fabulosas. Sinto uma enorme gratidão.     

Diana – O que você ainda gostaria de fazer como tradutora?
Raquel Cirne – Quero muito traduzir/verter livros que contem as histórias das nossas manifestações culturais, do nosso patrimônio histórico, como o flamenco – bueno, eso va a pasar sí o sí jejeje – mas igualmente a capoeira, a música gospel, os artesanatos, as celebrações religiosas, e tantas e tantas outras riquezas que tivemos a capacidade de criar e que ainda são desconhecidas ou superficialmente conhecidas... Também gostaria muito de traduzir/verter biografias. Nossas histórias de vida são extraordinárias. Tenho pela frente uns bons 50 anos de trabalho. Em algum momento, estas oportunidades chegam! Diana, muchas gracias por tu contacto y por ese momento tan bonito. ¡Me ha encantado!

Raquel Cirne
cirnetrad@yahoo.es

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