Raquel Cirne é uma gaúcha residente em Málaga há 10 anos, licenciada
em História e pós-graduada em Patrimônio Histórico. Tradutora, professora e
bailarina. Na Espanha, realizou cursos de especialização em Educação e realiza
cursos de formação em Tradução. Possui as certificações DELE C2 em Espanhol e Zertifikat
Deutsch TELC B2 em Alemão. Tem experiência principalmente com as áreas de
Turismo e Eventos, Marketing, Jurídica, Engenharia e Localização de Videogames,
e tem especial interesse em trabalhar com as áreas de História, Cultura e Artes.
É escritora do blog “El Tesoro de Palabras”.
Diana – Ser tradutor fazia parte de seus planos? Como
foi que tudo começou?
Raquel Cirne – Oi Diana, muito
obrigada pelo convite para compartilhar um pouco do teu espaço. Bueno, ¡vamos al lío! Formei-me em História nova demais, com 21 anos. Fui
professora em duas escolas estaduais durante três anos. Nesse período, conheci
o flamenco e me apaixonei profundamente pela língua e pela cultura espanholas,
e senti que tinha que morar na Andaluzia, onde tive o privilégio de trabalhar
profissionalmente com a dança, e também ministrava aulas de Português e Espanhol,
em menor escala. Palavras e dança sempre andaram juntas na minha vida – e em
todos os espetáculos que realizei havia texto, movimento e reflexão. Mas dançar
exclusivamente ficou esgotante e precisei de uma pausa. Procurei uma nova área
de atuação que pudesse conciliar com a dança. Comecei a faculdade de Turismo,
comecei a estudar Alemão, morei um tempo na Alemanha onde trabalhei nesta área,
mas não me identifiquei. Centrei-me no trabalho com os idiomas e voltei a
dançar com um envolvimento mais leve. Tenho um casal de amigos tradutores muito
queridos, que me deram valiosas orientações sobre a profissão, e descortinou-se
para mim um mundo absolutamente fantástico no qual tudo encaixou. Meu primeiro
trabalho remunerado como tradutora foi a versão de uma carta para o Alemão; pude
enxergar a enorme importância desta atividade e senti que tinha descoberto o
mapa do tesouro (do tesouro de palavras hehehe). Antes era tradutora de músicas
para movimentos, agora comecei a usar as letras!!!
Diana - Quais as línguas que você traduz?
Raquel Cirne – Trabalho principalmente com Português e Espanhol (que já considero
também língua materna) e com Inglês e Alemão (pela qual sou apaixonada).
Diana – Como sua formação em História e seu amor pelas
artes influenciam seu trabalho como tradutora?
Raquel Cirne – Acredito que tanto a formação em História como a vivência
artística treinaram em profundidade o olhar atento para os detalhes. Especificamente,
penso que a História tenha desenvolvido também a análise do texto, dos
contextos, das intenções do uso das palavras, das entrelinhas... A dança trabalha
bastante a repetição, a paciência, a intuição, a imaginação, a busca pela forma
perfeita. É provável que esses ingredientes tenham cozinhado uma tradutora bastante
detalhista, que valoriza cada palavra, os conteúdos, mas também as formas; que
pensa muito e que tem uma sensibilidade muito sensível hehehe. São Jerônimo foi
historiador e tradutor. Realmente são atividades que compartilham o método de
trabalho e que requerem algumas habilidades bastante similares.
Diana – Fale um pouco de sua paixão pelo flamenco, de
onde surgiu tamanho encantamento e como mudou sua vida?
Raquel Cirne – Apaixonei-me pelo flamenco de maneira fulminante quando assisti
ao filme “Bodas de Sangre”, de Carlos
Saura, exibido em uma disciplina da faculdade. A beleza, a profundidade, a intensidade
desta arte me deixaram atordoada. A partir de então, só pensava “nisso”, precisava
morar na Andaluzia, dançava sem parar, e quanto mais estudava e aprendia sobre
a história, a estrutura, os diferentes estilos, toda a linguagem própria, enfim;
ficava mais fascinada. É extremamente complexo e majestoso, algo que podemos
perceber quando se encontram o cante,
o toque e o baile. Na verdade, salvou a minha vida. Minha mãe morreu duas
semanas depois de eu começar a primeira aula de dança, e era só ali que
conseguia me concentrar e não pensar nessa tragédia. O flamenco estimula uma
postura mais altiva frente à vida, e também é um canal que consegue filtrar e
transformar dores muito profundas. Durante muito tempo foi a expressão de povos
marginalizados que se mesclaram e que conseguiram encontrar na Andaluzia o seu
lugar; e que transformaram muitos sentimentos negativos em uma arte
mundialmente apreciada.
Jabera Studio - diretora/professora Sandra Cisneros |
Diana – Você conseguiu realizar o sonho de tornar-se
uma dançarina de flamenco, que conselho você daria para aqueles que têm medo de
correr atrás de um sonho?
Raquel Cirne – Bueno, é certo que consegui caminhar
bastante, mas também tropecei e falhei muito, de modo que não sou assim nenhum
Deepak Chopra hehehe. Mas poderia dizer que a morte tão prematura da minha mãe
me mostrou que não se pode esperar para viver os sonhos, até mesmo porque isso
foi o que aconteceu com ela. Passou toda a vida em um trabalho que não gostava
e se aposentou com 49 anos. Estava cheia de planos, inclusive de fazer a
faculdade de Artes Visuais, já que desenhava e pintava maravilhosamente e era o
que mais amava. Mas ao invés de ir para a faculdade, foi para o hospital, com
um câncer furioso e morreu com 51 anos. Não podemos nos dar o luxo de “esperar
para viver” – quando tanta gente luta só para sobreviver. Mas o ensinamento
também não precisa vir dessa forma tão dura. Estamos em um século privilegiado
de circulação de ideias, de pessoas, de possibilidades, de encontros, de
intercâmbios de todo o tipo – é só estender a mão. Muitas vezes dizem que
Alemão é difícil; eu penso que é uma das coisas mais fáceis da vida. Correr
atrás de um sonho exige muito esforço e muita renúncia, talvez por isso venha o
medo; a infelicidade é mais segura e menos trabalhosa. Duas frases me
acompanham sempre e podem ser úteis para outras pessoas. Uma, que li em um
texto do Drummond: “somos do tamanho
daquilo que vemos, e não do tamanho da nossa altura”. Outra, de uma música
gaúcha do Leopoldo Rassier: “não podêmu
sintregá prus hômi”. Assim como estas, há milhares de outras à inteira
disposição!
Diana – Como é seu dia a dia?
Raquel Cirne – A minha rotina de trabalho não é fixa. Traduzo, algumas vezes
ministro cursos de idiomas em empresas, também tenho alunos particulares,
trabalho ocasionalmente em projetos de revisão e localização de videogames “in-house” (que são interessantíssimos),
danço. Com menor frequência realizo trabalhos de interpretação. Também dou
aulas de samba na minha escola de flamenco. É muito divertido, esse sim é o
momento relax, e três das alunas são
inglesas, muito legal. E por outro lado, está toda a parte da vida familiar.
Diana – De que você mais gosta em sua profissão?
Raquel Cirne – Trabalhar de maneira autônoma e com um horário bastante
flexível na santa paz da minha casinha é um grande privilégio. Também considero
muito positivo – e estimulante – o fato
de poder trabalhar “com o mundo todo”, encontrar situações novas mesmo dentro
do mesmo tema, aprender tanto, e que o nosso trabalho seja tão útil e tão
necessário. Gosto muito que seja um processo introspectivo e reflexivo.
Diana – Como surgiu a ideia do blog “El Tesoro de
Palabras”?
Raquel Cirne – Um blog é uma vitrine importante para divulgar o nosso trabalho
e estabelecer contatos. Mas queria também tratar sobre os idiomas através da
perspectiva cultural, comentando suas histórias e as nossas histórias com eles,
curiosidades, particularidades... e precisava de um nome que pudesse refletir
um pouco esta intenção. Lembrei da palavra que fez com que eu admirasse ainda
mais o Alemão: “Wortschatz”, que significa “vocabulário”. Mas a tradução literal
é “Tesouro de Palavras” (Schatz, tesouro; Wort, palavra). Para mim é uma
definição muito poética e muito acertada sobre o que realmente é o vocabulário,
um tesouro de palavras. Peguei-a “emprestada” e foi também uma maneira de
juntar os três idiomas que adoro: Português, Espanhol e Alemão.
Diana – Quais são seus projetos para o futuro?
Raquel Cirne – Estou caminhando para que minha atividade profissional
principal seja a tradução, e quero centrar-me no par ESP<>PORT. A escola
de flamenco que frequento está constituída como associação e realiza muitas
atividades culturais, e estou começando a colaborar em algumas delas, (estoy flipando), e torço para que seja
uma parceria bem longa!! Também gostaria de continuar participando dos projetos
relacionados com os videogames, são muito criativos e interessantes.
Diana – Gostaria de compartilhar alguma situação
engraçada, inusitada ou marcante relacionada a sua experiência no estrangeiro?
Raquel Cirne – Vou contar o “momento plim”, que deixou claro que o sonho tinha
se materializado. Antes de vir, recortava e juntava tudo o que encontrasse
sobre a Andaluzia, ficava horas olhando e imaginando. Mas tinha uma imagem que
era particularmente especial, a “porta” de entrada para o Mercado de Artesanía, com estas palavras escritas em azulejos e em
estilo árabe, em Granada. É uma rua mágica na qual há muitas lojinhas árabes
bem juntinhas. Eu olhava, mas parecia que era em Marte. Depois de muitos anos,
muito esforço e muita renúncia, eis que estava só a um oceano de distância. E
quando passei por ela, fiquei hipnotizada. Essa sensação sempre se repete
quando estou ali. Amo a Andaluzia e os andaluzes. Tudo aqui é mágico. Sem
dúvida houve, e haverá, muitos momentos especiais e divertidos, mas o que marca
mesmo é o carinho, a alegria e o respeito com o qual sempre fui tratada, nos
momentos mais cotidianos... Encontrei valiosas oportunidades profissionais e
pessoas fabulosas. Sinto uma enorme gratidão.
Diana – O que você ainda gostaria de fazer como
tradutora?
Raquel Cirne – Quero muito traduzir/verter livros que contem as histórias das
nossas manifestações culturais, do nosso patrimônio histórico, como o flamenco
– bueno, eso va a pasar sí o sí jejeje
– mas igualmente a capoeira, a música gospel, os artesanatos, as celebrações
religiosas, e tantas e tantas outras riquezas que tivemos a capacidade de criar
e que ainda são desconhecidas ou superficialmente conhecidas... Também gostaria
muito de traduzir/verter biografias. Nossas histórias de vida são
extraordinárias. Tenho pela frente uns bons 50 anos de trabalho. Em algum
momento, estas oportunidades chegam! Diana,
muchas gracias por tu contacto y por ese momento tan bonito. ¡Me ha encantado!
Raquel Cirne
cirnetrad@yahoo.es
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