O afogado mais bonito do mundo
Tradução: Diana Margarita
As primeiras crianças que avistaram o promontório escuro e
sigiloso que se aproximava pelo mar tiveram esperança de que fosse uma embarcação
inimiga. Depois viram que não usava bandeiras nem mastros, e acharam que fosse
uma baleia. Mas quando ficou encalhado na praia, tiraram-lhe os matagais de
sargaços, os filamentos de medusas e os restos de cardumes e naufrágios que o
cobriam, e somente então descobriram que era um afogado.
Tinham brincado com ele a tarde toda, enterrando-o e desenterrando-o na areia, quando alguém os viu por acaso e deu a voz de alarme no vilarejo. Os homens que o carregaram até a casa mais próxima notaram que pesava mais que todos os mortos conhecidos, quase tanto como um cavalo, e disseram a si mesmos que talvez tivesse ficado tempo demais à deriva e a água lhe tivesse penetrado os ossos. Quando o estenderam no chão, viram que era muito maior que todos os homens, pois mal cabia na casa, mas pensaram que talvez a faculdade de continuar a crescer após a morte fizesse parte da natureza de certos afogados. Tinha o cheiro do mar, e somente a forma permitia supor que se tratasse de um cadáver humano, porque a pele estava coberta de uma couraça de rêmora e de lodo.
Não tiveram de
limpar-lhe o rosto para saber que era um morto alheio. O vilarejo tinha apenas
umas vinte casas de tábuas, com pátios de pedras sem flores, dispersas no
extremo de um cabo desértico. A terra era tão escassa, que as mães andavam
sempre com temor de que o vento carregasse as crianças, e os mortos que os anos
deixavam tinham de lançá-los nos alcantis. Mas o mar era manso e pródigo, e
todos os homens cabiam em sete barcos. Assim, quando encontraram o afogado,
bastou-lhes olhar-se uns aos outros para perceber que estavam completos.
Naquela noite
não saíram para trabalhar no mar. Enquanto os homens averiguavam se não faltava
ninguém nos povoados vizinhos, as mulheres ficaram cuidando do afogado. Tiraram-lhe
o lodo com compressas de esparto, desembaraçaram-lhe o cabelo dos abrolhos
submarinos e rasparam-lhe a rêmora com ferros de descamar peixes. À medida que
o faziam, notaram que sua vegetação era de oceanos remotos e de águas
profundas, e que suas roupas estavam em farrapos, como se houvesse navegado por
entre labirintos de corais. Notaram também que superava a morte com altivez, pois
não tinha o semblante solitário dos outros afogados do mar, nem a catadura
sórdida e necessitada dos afogados fluviais. Mas, somente quando acabaram de limpá-lo,
tiveram consciência do tipo de homem que era, e então ficaram sem fôlego. Não
apenas era o mais alto, o mais forte, o mais viril e o mais bem armado que jamais
haviam visto, senão que ainda quando o estavam vendo não lhes cabia na imaginação.
Não encontraram
no vilarejo cama bastante grande para estendê-lo nem mesa bastante sólida para
velá-lo. Não lhe serviram as calças de festa dos homens mais altos, nem as
camisas dominicais dos mais corpulentos, nem os sapatos do mais bem apessoado.
Fascinadas por sua desproporção e por sua formosura, as mulheres decidiram então
fazer-lhe umas calças com um pedaço de vela carangueja, e uma camisa de cretone
de noiva, para que pudesse continuar sua morte com dignidade. Enquanto
costuravam sentadas em círculo, contemplando o cadáver entre ponto e outro,
parecia-lhes que o vento não fora nunca tão tenaz nem o Caribe estivera nunca tão
ansioso como naquela noite, e supunham que essas mudanças tinham algo que ver
com o morto. Pensavam que, se aquele homem magnífico tivesse vivido no vilarejo,
sua casa teria tido as portas mais largas, o teto mais alto e o chão mais
firme, e o bastidor de sua cama teria sido de cavernas-mestras com pernas de ferro,
e sua mulher teria sido a mais feliz. Pensavam que ele teria tido tanta
autoridade que teria tirado os peixes do mar somente com chamar seus nomes, e teria
posto tanto empenho no trabalho que teria feito brotar mananciais dentre as
pedras mais áridas e teria podido semear flores nos alcantis. Compararam-no em
segredo com seus próprios homens, pensando que não seriam capazes de fazer em
toda uma vida o que aquele era capaz de fazer em uma noite, e terminaram por
repudiá-los no fundo de seus corações como aos seres mais esquálidos e mesquinhos
da terra. Andavam extraviadas por esses dédalos de fantasia, quando a mais velha
das mulheres, que por ser a mais velha tinha contemplado o afogado com menos paixão
que compaixão, suspirou:
— Tem cara de
chamar-se Esteban.
Era verdade. À
maioria bastou olhá-lo novamente para compreender que não poderia ter outro
nome. As mais teimosas, que eram as mais jovens, mantiveram a ilusão de que ao vestir-lhe
a roupa, estendido entre flores e com uns sapatos de verniz, pudesse chamar-se
Lautaro. Mas foi uma vã ilusão. O pano resultou parco, as calças mal cortadas e
mais mal costuradas ficaram-lhe estreitas, e as forças ocultas de seu coração faziam
pular os botões da camisa. Após a meia-noite, os assovios do vento
enfraqueceram, e o mar caiu no sopor da quarta-feira. O silêncio acabou com as
últimas dúvidas: era Esteban. As mulheres que o vestiram, as que o pentearam,
as que lhe cortaram as unhas e lhe rasparam a barba não puderam reprimir um
estremecimento de compaixão quando tiveram de resignar-se a deixá-lo jogado no
chão. Foi então que compreenderam quanto ele deveria ter sido infeliz com aquele
corpo descomunal, se mesmo depois de morto o estorvava. Viram-no condenado em
vida a passar de lado pelas portas, a ferir a cabeça nas vigas, a permanecer de
pé durante as visitas sem saber o que fazer com as macias e rosadas mãos de peixe-boi,
enquanto a dona da casa buscava a cadeira mais resistente e lhe suplicava morta
de medo sente-se aqui Esteban, faça-me o favor, e ele encostado nas paredes, sorrindo,
não se preocupe senhora, estou bem assim, com os calcanhares em carne viva e as
costas escaldadas de tanto repetir o mesmo em todas as visitas, não se preocupe
senhora, estou bem assim, só para não passar a vergonha de desmontar a cadeira,
e acaso sem ter sabido nunca que aqueles que lhe diziam não vá Esteban, fique
ao menos até o café ficar pronto, eram os mesmos que depois sussurravam já se
foi o grande bobo, que bom, já se foi o tonto bonito. Era isso o que pensavam as
mulheres diante do cadáver um pouco antes do amanhecer. Mais tarde, quando lhe
cobriram o rosto com um lenço para que a luz não o incomodasse, viram-no tão morto
para sempre, tão indefenso, tão parecido com seus homens, que se lhes abriram as
primeiras fendas de lágrimas no coração. Foi uma das mais jovens a que começou
a soluçar. As outras, combinando entre si, passaram dos suspiros aos lamentos, e
quanto mais soluçavam mais desejos sentiam de chorar, porque o afogado se lhes tornava
cada vez mais Esteban, até que o choraram tanto que foi o homem mais desvalido
da terra, o mais manso e o mais serviçal, o pobre Esteban. Assim, quando os
homens voltaram com a notícia de que o afogado tampouco era dos vilarejos vizinhos,
elas sentiram um vazio de júbilo entre as lágrimas.
— Deus seja
louvado — suspiraram: — é nosso!
Os homens acharam
que aqueles trejeitos não eram mais que frivolidades de mulher. Cansados das
tortuosas averiguações noturnas, a única coisa que desejavam era livrar-se de uma
vez do estorvo do intruso antes que se acendesse o sol bravo daquele dia árido e
sem vento. Improvisaram uma maca com restos de traquetes e espichas, e as
amarraram com carlingas de altura, para que resistisse ao peso do corpo até os alcantis.
Quiseram acorrentar-lhe aos tornozelos uma âncora de navio mercante para que afundasse
sem tropeços nos mares mais profundos, onde os peixes são cegos e os mergulhadores
morrem de saudade, de forma que as más correntezas não fossem devolvê-lo à
margem, como tinha ocorrido com outros corpos. Mas, quanto mais se apressavam,
mais coisas ocorriam às mulheres para perder tempo. Andavam como galinhas assustadas
bicando amuletos do mar nas arcas, umas estorvando aqui porque queriam pôr no afogado
os escapulários do bom vento, outras estorvando lá para fechar uma pulseira de
orientação, e ao cabo de tanto saia daí mulher, fique onde não incomode, olhe
que quase me faz cair sobre o defunto, aos homens subiram-lhes ao fígado as
suspicácias e começaram a recriminar o objeto de tanta ferragem de altar-mor
para um forasteiro, se por mais tachinhas e caldeirinhas que usasse, não evitariam
que os tubarões o mastigassem, mas elas continuavam a arrumar suas relíquias de
araque, levando e trazendo, tropeçando, enquanto se lhes esvaia em suspiros o
que não se lhes esvaía em lágrimas, razão por que os homens terminaram por repreender
desde quando aqui semelhante alvoroço por um morto ao deus-dará, um afogado de
ninguém, um presunto de merda. Uma das mulheres, mortificada por tanta insolência,
tirou então o lenço do rosto do cadáver, e também os homens ficaram sem fôlego.
Era Esteban.
Não foi preciso repeti-lo para que o reconhecessem. Se lhes tivessem dito Sir
Walter Raleigh, talvez, até eles se tivessem impressionado com seu sotaque de gringo,
com sua arara no ombro, com seu arcabuz de matar canibais, mas Esteban podia
ser somente um no mundo, e ali estava ele estendido como um sável, sem botas,
com umas calças de setemesinho e essas unhas rochosas que só podiam ser
cortadas à faca. Bastou que lhe tirassem o lenço do rosto para perceberem que
estava envergonhado, que não tinha culpa de ser tão grande, nem tão pesado, nem
tão bonito, e se tivesse sabido que aquilo aconteceria teria buscado lugar mais
discreto para afogar-se, sério, eu me teria amarrado a mim mesmo uma âncora de
galão ao pescoço e teria gaguejado como quem não quer fazê-lo nos alcantis,
para não andar agora incomodando com este morto de merda, como vocês dizem,
para não incomodar ninguém com esta porcaria de presunto que não tem nada que
ver comigo. Havia tanta verdade em seu modo de estar, que até os homens mais
suspicazes, os que sentiam amargas as minuciosas noites do mar temendo que sua
mulher se cansasse de sonhar com eles para sonhar com os afogados, até esses, e
outros mais empedernidos, estremeceram até a medula com a sinceridade de
Esteban.
Foi assim que lhe fizeram os funerais
mais esplêndidos que podiam ser concebidos para um afogado enjeitado. Algumas
mulheres que foram buscar flores nos vilarejos vizinhos retornaram com outras
que não acreditavam no que lhes contavam, e estas foram buscar mais flores quando
viram o morto, e levaram mais e mais, até que houve tantas flores e tantas pessoas
que mal se podia caminhar. Na última hora, doeu-lhes devolvê-lo órfão às águas,
e escolheram-lhe um pai e uma mãe entre os melhores, e outros se tornaram seus
irmãos, seus tios e seus primos, e assim através dele todos os habitantes do
vilarejo terminaram por ser parentes entre si. Alguns marinheiros que ouviram o
pranto à distancia perderam a certeza do rumo, e soube-se de um que se fez
amarrar ao mastro grande, lembrando antigas fábulas de sereias. Enquanto disputavam
o privilégio de carregá-lo nos ombros pela encosta escarpada dos alcantis, homens
e mulheres tiveram consciência pela primeira vez da desolação de suas ruas, da
aridez de seus pátios, da estreiteza de seus sonhos, diante do esplendor e da
formosura de seu afogado. Soltaram-no sem âncora, para que voltasse se quisesse,
e quando quisesse, e todos prenderam o fôlego durante a fração de séculos que
demorou a queda do corpo até o abismo. Não tiveram necessidade de olhar-se uns
aos outros para dar-se conta de que já não estavam completos, nem o voltariam a
estar jamais. Mas também sabiam que tudo seria diferente a partir de então, que
suas casas teriam a porta mais larga, o teto mais alto, o chão mais firme, para
que a lembrança de Esteban pudesse andar por todas as partes sem esbarrar nas
vigas, e que ninguém ousasse sussurrar no futuro já morreu o grande bobo, que pena,
já morreu o tonto bonito, porque eles pintariam as fachadas de cores alegres
para eternizar a memória de Esteban, e quebrariam a espinha escavando mananciais
nas pedras e semeando flores nos precipícios, para que nos amanheceres dos anos
vindouros os passageiros dos grandes barcos despertassem sufocados por um cheiro
de jardins em alto-mar, e o capitão tivesse de descer de seu alcácer com seu
uniforme de gala, com seu astrolábio, sua estrela polar e sua réstia de medalhas
de guerra, e apontando para o promontório de rosas no horizonte do Caribe dissesse
em catorze idiomas: olhem para lá, onde o vento é agora tão manso que fica para
dormir debaixo das camas, lá, onde o sol brilha tanto que os girassóis não sabem
para onde girar, sim, lá, é o vilarejo de Esteban.
Um conto magnífico 🤩
ResponderExcluirConcordo e espero que tenha gostado da tradução!
ResponderExcluirObrigada por visitar meu blog!