Para começar, a interpretação é
apenas um dos aspectos textuais, porque o texto é como nossa pele: composto de
várias camadas. Seguindo a analogia da pele, a camada mais superficial, ou seja a "epiderme" do texto
corresponderia à forma, à letra; isto é, aos elementos
mais evidentes, tais como: ortografia, pontuação, concordância, regência, sintaxe,
terminologia, etc. O tradutor deve cuidar bem da “epiderme” do texto, eliminando
as “células mortas”, os indesejáveis “pelos” (que falta faz aqui o acento
diacrítico!) e outras impurezas que comprometam a aparência textual.
A seguir, encontra-se a derme, que
por sua vez, subdivide-se em duas camadas: a camada papilar e a camada
reticular. A camada papilar, camada logo abaixo da epiderme, possui
projeções que se encaixam na epiderme. Seguindo a analogia, a “camada papilar”
do texto corresponderia à estruturação textual: a divisão dos parágrafos e a forma
como eles se encadeiam, os mecanismos de coesão, as referências (dêixis), etc.
A
camada reticular é a camada mais espessa da pele e é constituída por tecido
conjuntivo mais denso; logo, mais difícil de penetrar. A “camada reticular” do
texto corresponderia à significação e à intertextualidade. Não vou discorrer aqui
sobre como se dá o processo de interpretação. Evidentemente, a tradução envolve
interpretação. Entretanto, apesar de esta ser uma atividade subjetiva, há um
limite. Há quem afirme inclusive que as possibilidades de interpretação são
infinitas. Mas isso significa que qualquer interpretação é válida?
O tradutor não pode entrar na cabeça
do autor para descobrir suas intenções, por isso ele deve ter como parâmetro a
literalidade do texto. Estou falando aqui de textos informativos, em que
predomina a linguagem denotativa. Nos textos literários, a questão é bem mais
complexa devido à própria natureza do texto literário, onde a linguagem
extrapola o sentido comum.
Quando digo que o tradutor deve
ater-se à literalidade do texto, refiro-me a que ele deve traduzir, por
exemplo, “paloma blanca” ou “white dove” ao português como “pomba branca” e não
por “paz”, porque aí ele já estaria entrando no terreno arriscado e movediço da
metáfora. Uma sobreinterpretação é
aquela que não respeita os princípios de economia textual. Um exemplo,
fornecido por Umberto Eco, seria a tentativa de se atribuir ao termo “gay” na
frase de Wordsworth, “A poet could not but be gay”, uma conotação
sexual. Agir assim seria desrespeitar o mundo possível da obra e o sistema lexical
de seu tempo.
Por último, abaixo da derme,
encontramos o tecido subcutâneo, conhecido também como tecido adiposo. Em
outras palavras, o “tecido adiposo”, ou seja, a gordura do texto, corresponderia a tudo
aquilo que sobra no texto e obscurece seu significado. Devemos cuidar para que
o texto final seja enxuto.
Mas
voltando à questão inicial “O que fazer ao deparar com um texto cabeludo”? Eu
diria que se os problemas se restringirem às camadas mais externas do texto, ainda será possível realizar a tradução, desde que se obtenha a autorização prévia do autor
ou gerente do projeto para “depilar” o texto “cabeludo”, acordando antecipadamente o valor deste serviço, é claro.
Porém se o problema se encontrar na camada da significação, aí o problema é mais grave: é “pelo encravado”. Eu
recomendaria negar o trabalho, já que o texto final será atribuído ao tradutor. Afinal, é melhor rechaçar um texto cabeludo que correr o risco de, ao tentar traduzi-lo, perder os cabelos.
Texto fantástico! Envolvente, bem humorado e com grande qualidade de argumentos. Flerta com a realidade do tradutor que muitas vezes é obrigado a lidar com textos rebuscados, inconclusivos, conflitantes... Somente uma "bola de cristal" mesmo! E você deu uma boa dica: deveríamos pleitear a canonização de Nostradamus e convertê-lo em "novo santo padroeiro dos tradutores" (e revisores rs!). São Jerônimo é para os fracos!!! Perfeito Diana!!! Parabéns.
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