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quarta-feira, 14 de maio de 2014

A tradução de gíria



–¡Ni Dadinho ni leches! ¡Ahora me llamo Zé Pequeño, gilipollas!

Ao contrário do que possa parecer, quanto mais coloquial é o texto, mais difícil resulta traduzi-lo. Isso porque o texto coloquial reproduz a oralidade, e esta está intimamente ligada ao entorno cultural e ao momento histórico.

A linguagem coloquial caracteriza-se principalmente pela efemeridade, espontaneidade e pela permissividade, distanciando-se da norma padrão e reproduzindo marcas da oralidade como redundâncias, elipses, frases inacabadas, onomatopeias, contrações, modismos, gírias, vulgaridades, clichês, chavões, etc.

A língua é um fato social: a fala está ligada às condições da comunicação, que por sua vez estão sempre ligadas às estruturas sociais. A gíria é um dialeto usado por grupos sociais restritos e, frequentemente, menos favorecidos, que utilizam o vocabulário como marca identificadora. Como via de regra, esses grupos são marginais na sociedade e assumem postura de afronta aos valores da maioria, consequentemente, à língua padrão. Dentro do seio do grupo, a gíria é obrigatória e valorizada; fora dele, torna-se estigmatizada.

Tomemos como exemplo a linguagem da obra do escritor Paulo Lins, Cidade de Deus, que retrata o crescimento do crime organizado na Cidade de Deus entre o final da década de 1960 e o início da década de 1980. A obra que virou filme reproduz a linguagem cotidiana da favela onde “falha a fala e fala a bala” e que se mantém em torno da gíria e do calão. 

As falas dos personagens, breves e cifradas, abordam basicamente o comércio de drogas e o domínio das bocas de fumo. O registro linguístico é repleto de gíria e termos obscenos e retrata a diferença de classe e a violência presente nas favelas.

Uma das principais dificuldades do tradutor refere-se à terminologia: como encontrar fontes confiáveis para a pesquisa de vocabulário, já que muitos dos termos provavelmente não estarão dicionarizados, ou ao menos, não com o sentido com que são usados nesse contexto? Além de encontrar correspondentes na língua-alvo, o tradutor deve manter o registro informal do texto, de forma que pareça natural.

Representam verdadeiros desafios para o tradutor traduzir termos como: “bandidage”, “ferro” (arma de fogo) “punheteira” (arma 12 mm”); “caixa baixa” (crianças da favela); “boca” (lugar onde se vende a droga).
O escritor e tradutor argentino Mario Merlino, traduziu o livro de Paulo Lins para o espanhol. Numa entrevista, Mario disse que demorou quase um ano para terminar a tradução devido à dificuldade de traduzir a gíria para a qual não há dicionários.

Além das dificuldades linguísticas, muitas vezes é preciso reproduzir para o público-alvo, uma realidade que não existe ou que se desenvolve de uma forma diferente na cultura-alvo. A forma como se dá o comércio de drogas nas favelas do Rio, por exemplo, é diferente da forma como ela ocorre em outros centros urbanos, pois está condicionada por fatores políticos, sociais e econômicos do contexto em que se produz.

Portanto, para traduzir linguagem coloquial e gíria, não basta ter um conhecimento profundo da língua e da norma, já que esse tipo de registro representa uma transgressão à norma. Deve-se, principalmente, ter um ótimo conhecimento das duas culturas, bem como dos aspectos socioeconômicos do entorno. Ou seja, o tradutor precisará fazer uma exaustiva pesquisa terminológica e comportamental, além de ter sensibilidade para decidir quais são as melhores estratégias de tradução, já que a tradução literal raramente se aplica a esse tipo de texto.

Vejamos a tradução para o espanhol de um trecho do filme que explica como se dá a venda de drogas na favela:

“Vender droga é um negócio como qualquer outro. O fornecedor entrega o peso e no cafofo é feita a endolação. O trabalho de endolação é a linha de montagem do tráfico. Tão chato quanto apertar parafuso. A maconha é embalada num pacotinho chamado dóla[r]. A cocaína é embalada em papelotes e depois em trouxinhas de 10 ou pacotinhos de 100. O tráfico tem até plano de carreira. Os garotos menores começam a trabalhar como aviãzinho. Recebem uma boa grana pra levar e trazer refrigerante, mandar recado, esse tipo de coisa. Depois eles passam para olheiro. Quando a polícia aparece, a pipa desce do céu e todo o mundo sai saindo. De olheiro, o cara passa para vapor vendendo a droga na favela. Pintou sujeira, o vapor tem que evaporar rapidinho. Soldado é um cargo mais responsa, ele fica na contenção. Se o cara for esperto e bom de conta, pode virar gerente da boca. O gerente é o braço direito do patrão.”

«Vender droga es un negocio como otro cualquiera. El proveedor entrega la mercancía, que se embala en el punto de venta. Ese trabajo de embalaje es la línea de montaje de la droga. Es tan aburrido como apretar tornillos. La hierba se embala en paquetitos llamados “dolas”. La cocaína se embala en papelinas y luego en bolsitas de 10 o en paquetitos de 100. También se puede traficar estudiando una carrera. Los chavalines empiezan a trabajar de recaderos. Les pagan muy bien por traer refrescos, hacer los recados y ese tipo de cosas. Luego pasan a ser vigilantes. Cuando la policía aparece, la cometa baja del cielo y todo el mundo huye. De vigilante pasas a ser vapor, vendiendo la droga por tu favela. Cuando hay líos, el vapor se evapora rápido. El soldado es un cargo de más responsabilidad, él está en los puntos clave. Si el soldado es listo y bueno en hacer cuentas, puede convertirse en el gerente del local. El gerente es la mano derecha del jefe.»

E agora, um diálogo do mesmo filme:

–Quem é? Quem é? Vá indo aí...
–Neguinho...
–Porra, Dadinho! Como chega assim na minha boca, meu amigo?
–Quem falou que a boca é tua, rapaz?
–Quem falou que a boca é tua, cara?
–Qual é, Dadinho?
–Dadinho, o caralho! Meu nome agora é Zé Pequeno, porra!
–O nome dele é Zé Pequeno, tá entendendo?
–E tu vai cair, filho-da-puta!
–Não mata, não, que ele já entendeu. Não é, Neguinho?
–Pode ficar com a boca aí, que eu não quero nada, não. Vou sair saindo, que eu não quero alegação, valeu?

O certo era eu aproveitar aquela chance para vingar a morte de meu irmão.

–Vou sair saindo, na moral...
–Tu vai ficar vivo, Neguinho. Mas vai ficar vivo aqui, trabalhando para nós. Tá escutando?

Pensar é fácil.


–Ó, psiu, vai aonde, moleque?
–Ele tá no contexto, Zé.
–Como é que é seu nome, moleque?
–Buscapé.
–Buscapé, o irmão do Marreco.
–Marreco?
–O falecido Marreco.
–Vai lá, moleque, se adianta. Aí, moleque! Diz para todo o mundo agora que a boca dos apês pertence a Zé Pequeno, e a gente vai começar vender pó. Tá escutando?
–Cocaína!
­–Tá ligado?

Para assistir ao vídeo em português: http://www.youtube.com/watch?v=kTn-UImKJZk&feature=fvwrel

E sua tradução ao espanhol:

–¿Quién es? ¿Quién es? Ve a ver.
–Joder, Neguinho.
–Joder, Dadinho. ¿Cómo te presentas así en mi local?
–¿Quién ha dicho que el local es tuyo, tío?
–Sí, ¿quién lo ha dicho, eh?
–¿Qué pasa, Dadinho?
–¡Ni Dadinho ni leches! ¡Ahora me llamo Zé Pequeño, gilipollas!
–Se llama Zé Pequeño, ¿entiendes?
–¡Y tú la vas a palmar, hijo puta!
–No, no lo mates. Ya lo ha entendido. ¿Verdad, Neguinho?
–Puedes quedarte con el local, yo no quiero nada.
–Sí, seguro.
–Yo me largo, no quiero problemas.

La verdad es que debí aprovechar aquella oportunidad para vengar la muerte de mi hermano.

–Tú vivirás, Neguinho. Pero te quedarás aquí trabajando para nosotros, ¿me has oído?

Pensar es fácil.

–¡Eh! ¿Adónde vas?
–Está limpio, Zé.
–¿Cómo te llamas, chaval?
–Buscapé.
–Buscapé es el hermano de Marreco.
–¿Marreco?
–El difunto Marreco.
–Anda, chico, lárgate de aquí. Oye, muchacho, diles a todos que ahora el local de los Apés pertenece a Zé Pequeño y que vamos a empezar a vender farlopa, ¿entendido?
–Cocaína.
–Se ha ido cagado.

Para assistir ao vídeo em espanhol:


Neste pequeno diálogo podemos ver alguns pequenos deslizes na tradução, como o termo “Apés”, passou despercebido ao tradutor que se trata da abreviação de apartamentos, uma tradução possível seria “pisos”. A tradução do último “Tá ligado?” por “–Se ha ido cagado.” (foi embora com medo, "encagaçado") também não foi a mais adequada, pois não corresponde ao significado em português: “entendeu?”, mais adequada seria “te has enterado?”. A palavra "boca" (ponto de venda de drogas) foi traduzida por um termo mais genérico "local" (lugar), já que o termo original é próprio do âmbito do comércio de drogas que ocorre no Brasil. Percebemos também a amenização dos palavrões provavelmente por exigência da distribuidora do filme.

Outro deslize foi a tradução de "O tráfico tem até plano de carreira" que foi traduzido como "También se puede estudiar haciendo una carrera". Cuja tradução deveria ser semelhante a: "El tráfico 'tiene/incluye/propone' hasta un plan de carrera". (Deixo meu agradecimento ao tradutor Fernando Carlos Iglesias, que contribuiu com esta observação).

Tu nota, como siempre, excelente. Pero la traducción de la película deja bastante que desear. 

 
Na versão norte-americana, o título foi traduzido como City of God e os nomes das personagens da versão original em português, que também aparecem na versão dublada ao espanhol, não são os mesmos na versão em inglês, Buscapé virou Rocke, Zé Pequeño virou Little Ze (ou Little Dice enquanto ainda se chama Dadinho); Mané Galinha é Knockout Ned; Cenoura é Carrot e Cabeleira é Shaggy.

Um comentário:

  1. Diana, este tema é realmente desafiador e você o abordou com brilhantismo. A tradução de gírias é muito difícil em qualquer idioma, mas acredito que sejam mais confortáveis entre línguas latinas. Já, traduzir de uma latina para uma anglo-saxônica se torna quase "missão impossível"... Como você disse, o problema é cultural. Abraço

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