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terça-feira, 22 de abril de 2014

Tradução para o português de um conto de Camilo José Cela



Obra de Mark Barone do projeto "An Act of Dog"


Pequena parábola de “Chindo” cão de cego
Camilo José Cela 
Título original: Pequeña parábola de "Chindo" perro de ciego
Tradução: Diana Margarita
 
“Chindo” é um cãozinho vira-lata e de nobres sentimentos. É pitoco e sua pele não tem brilho, de pequeno porte e orelhas flácidas. “Chindo” é um cão abandonado e sentimental, arbitrário e carinhoso, malandro forjado, vagabundo e adorável, como os pardais-cinzentos da cidade. “Chindo” tem o ar, entre alegre e inconsciente, das crianças pobres, das crianças que vagam sem rumo fixo, olhando para o chão em busca da moeda que alguém, certamente, deve ter perdido.

“Chindo”, como todas as criaturas do Senhor, vive do que cai do céu, que às vezes é um pão duro, em ocasiões uma pelanca de carne, de vez em quando um esquecido resto de salame, e sempre, graças a Deus, um sorriso que somente “Chindo” vê.

“Chindo”, com a consciência tranquila e o olhar adolescente, é cão entendido em homens cegos, sábio nas difíceis artes de guia, companheiro leal na desgraça e na escuridão, nas trevas e no andar sem fim, sem objeto e com resignação.

O primeiro amo de “Chindo”, sendo “Chindo” um cão, foi um autor de coplas barbudo e sem olhos, andarilho e trovador, que se chamava Josep, e era, segundo dizia, do casario de Soley Avall, em San Juan de las Abadesas e às margens de um rio Ter ainda jovem.

Josep, com seu porte de capitão em desgraça, passou a vida cantando por Ampurdán e Cerdaña, com sua voz de barítono montanhesco, um romance andeiro que começava dizendo:

            Si t´agrada córrer mon,
            algun dia, sense pressa,
            emprèn la llarga travessa
            de Ribes a Camprodon,
            passant per Caralps i Núria,
            per Nou Creus, per Ull de Ter
            i Setcases, el primer
            llogaret de la planúria.

“Chindo”, ao lado de Josep, conheceu o mundo das montanhas e da água que cai rolando pelo penhasco, rugidora como o diabo preso aos arbustos e fria como a mão das virgens mortas. “Chindo”, sem se afastar de seu amo mendigo e errante, soube do sol e da chuva, aprendeu o canto das cotovias e da minúscula alvéola-branca, instruiu-se nas artes do verso e da orientação e viveu feliz durante toda sua juventude.

Mas um dia… Como nas fábulas desgraçadas, um dia Josep, que era já muito velho, dormiu e não acordou mais. Foi na Font de Sant Gil, a que está debaixo de uma gentil capela.

“Chindo” uivou com a dor dos cães sem amo cego a quem guardar, e as montanhas lhe devolveram seu frio e desconsolado uivo. Na manhã seguinte, uns homens levaram o cadáver de Josep em cima de um burro manso e cinzento, e “Chindo”, para o qual ninguém dirigiu o olhar, chorou sua solidão em meio ao campo, a história - a eterna historia dos dois amigos Josep e “Chindo” – ficava para trás e à sua frente, como em mar aberto, um caminho largo e misterioso.

Quanto tempo andou à toa “Chindo”, o cão solitário, de Seo a Figueras, sem amo a quem servir, nem amigo a quem escutar, nem cego a quem atravessar as pontes como um anjo? “Chindo” contava o trânsito das estações no relógio das árvores e evidentemente envelhecia - onze anos já! – sem que Deus lhe desse a companhia que procurava.

Tentou viver entre os homens com olhos no rosto, mas logo percebeu que os homens com olhos no rosto olhavam atravessado, sinistramente, e não tinham sossego no olhar da alma. Tentou deambular, como um cão vagabundo e sem princípios, pelas pracinhas e pelas ruelas dos povoados grandes - dos povoados com um registro civil, duas drogarias e sete açougues – e sem se deter viu que, nos povoados grandes, cem cães disputavam a dentadas o desmedrado osso da caridade. Tentou lançar-se ao campo, como um bandoleiro dos tempos antigos, como um José María «el Tempranillo», a pé e em forma de cão, mas o campo imprimiu cunho em seu medo, na primeira noite, e o devolveu ao casario com os sustos grudados à espinha, como carícias que não se esquecem.

“Chindo”, com fome e sem consolo, sentou-se à beira da estrada esperando que a marcha do mundo o empurrasse para onde quisesse, e, como estava cansado, adormeceu ao pé de uma espinheira carregada de bolinhas vermelhas e brilhantes como se fossem de vidro.

Por um sendeiro pintado de azul desciam três meninas cegas com a cabeça enfeitada com a pálida flor do peral. Uma menina se chamava Maria, a outra Nuria e a outra Montserrat. Como era verão e o sol aquecia o ar de respirar, as meninas cegas vestiam roupas de seda, muito endomingadas, e cantavam canções com uma vozinha amável e de guizo.

“Chindo”, quando as viu se aproximarem, quis acordar para lhes dizer:

-Gentis senhoritas, querem que eu vá com vocês para lhes mostrar onde há um degrau, ou onde começa o rio, ou onde está a flor que enfeitará suas cabeças? Meu nome é “Chindo”, estou sem trabalho e, em troca de minhas artes, não peço nada além de um pouco de conversa.

“Chindo” teria falado como um poeta da Idade Média. Mas “Chindo” sentiu um frio repentino. As três meninas cegas que desciam pelo sendeiro pintado de azul foram se apagando atrás de uma nuvem que cobria toda a terra.

“Chindo” já não sentiu frio. Pensou voar, como uma leve ave, e ouviu uma voz amiga que cantava:

            Si t´agrada córrer mon,
            algun dia, sense pressa…

“Chindo”, o cãozinho de sangue ruim e de nobres sentimentos, estava morto ao pé da espinheira de vermelhas e brilhantes bolinhas que pareciam de vidro.


Alguém ouviu tocar pelo céu as ingênuas trombetas dos anjos mais jovens.

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