Na Espanha, assim como no Brasil, a
linguagem do dia a dia sofre a influência dos meios de comunicação, das
propagandas. Muitas frases originadas dos comerciais, das novelas e dos
programas de humor acabam se tornando clichês, chavões na boca do povo. Mais
que “clichês”, são verdadeiros “chiclés” grudentos que as pessoas mastigan,
mastigam e depois jogam fora. A maioria dessas frases não sobrevive ao tempo,
entretanto, algumas conseguem essa proeza e acabam se cristalizando na cultura
popular.
Vamos relembrar algumas dessas frases que caíram na boca dos brasileiros:
"Tô certo, ou tô errado” – frase
dita pelo sinhozinho Malta na novela Roque Santeiro
“Não é brinquedo não” – frase dita pela Dona Jura na novela O Clone
“Cala a boca, Magda!” – frase dita por Caco Antibes no programa Sai de Baixo
“Só abro a boca quando eu tenho certeza!” – frase dita pela personagem Ofélia no programa Zorra Total
“Você quer pedir ajuda aos universitários?” – frase que ficou famosa num programa de perguntas e passou a ser usada ironicamente a alguém tem dúvidas sobre algo.
“Tem mil e uma utilidades!” – frase que ficou famosa com a propaganda da lã de aço Bombril, é usada para referir-se a pessoas ou coisas que têm muitas utilidades.
“Olha o tio da Sukita” – frase utilizada para ridicularizar o coroa que dá encima das gatinhas, originou-se da propaganda do refrigerante Sukita, "Quem bebe sukita não engole qualquer coisa!" em que um homem de meia-idade levava um fora de uma mocinha jovem.
“Não é assim uma Brastemp” – frase que denota comparação, para dizer que algo não era tão bom quanto se esperava.
“Parece mas não é” – frase que ficou famosa graças à propaganda do Denorex, foi utilizada para referir-se a produtos pirateados, falsificações.
“Tomou doril” – frase que ficou famosa devido à propaganda de comprimidos contra dor de cabeça Doril, depois disso, quando alguém desaparece do mapa, diz-se que tomou doril.
O tradutor, como sabemos, não traduz
apenas palavras, mas sim ideias que estão enraizadas num determinado contexto
cultural e histórico, por isso, em dado momento, é normal que acabe se
deparando com uma dessas frases clichês ou com referências a programas
televisivos, produtos ou qualquer outra coisa que não pertença a seu universo
cotidiano. Daí a importância de ler jornais e revistas ou assistir a televisão na
língua que traduz e para a qual traduz.
Vejamos um exemplo de duas frases
que ficaram famosas na Espanha devido a um comercial televisivo:
“¡Aceptamos barco!” e “Aceptamos
pulpo como animal de compañía”.
A origem dessas frases deve-se ao
comercial de um jogo de tabuleiro chamado Scattergories, que ficou muito popular nos anos 90. No anúncio aparece um cara
indo embora com o jogo embaixo do braço. Atrás dele, um casal grita da porta de
uma cabana: «¡Aceptamos barco!». O cara que estava indo embora, com atitude de
menino mimado, pregunta sem se virar: «¿Como animal acuático?», e o casal
responde em uníssono: «Sííí». Deduz-se que o ofendido dono do jogo volta para o
jogo. Enquanto isso ouve-se uma voz que explica o funcionamento do jogo.
Basicamente, um jogador diz uma letra e outra pessoa seleciona uma categoria. A
pessoa deve tentar dizer ou escrever num papel num tempo determinado o maior
número de palavras possíveis que comecem com a letra escolhida e que estejam relacionadas com a categoria em
questão. No quadro seguinte, uma jogadora – provavelmente a mesma
moça que gritou da porta da cabana no primeiro quandro da propaganda, pergunta-se, com voz melosa, de sonsa, e olhando
para seu papel: «Empezando por p, un animal de compañía». Do seu lado, com um
olhar libidinoso, encontra-se o dono do jogo, que, insinuando-se, diz:
«¡Pulpo!». Ela dá um gritinho, ao mesmo em tempo que o marido, que está de
frente para o galanteador, exclama com estranheza e indignação: «¿Pulpo?». Rapidamente, o dono do jogo volta-se para ele com um olhar sério e ameaçador. Não diz nada, mas o significado desse olhar é inequívoco "Ou você aceita polvo como animal de estimação ou vou embora como fiz antes e levo o jogo comigo". O marido responde resignado: «vale» e o comercial acaba.
Apesar de a frase "Aceptamos pulpo como animal de compañía" não chegar a ser dita no comercial, o fato é que a frase consolidou-se e passou a designar qualquer coisa ou situação aceita a contragosto, ou aceitar o inadmissível. A
popularidade das frases ultrapassou a oralidade e alcançou a imprensa escrita,
como mostra o seguinte fragmento extraído da versão on-line do jornal espanhol El País.
“¿Juez cien por cien o solo en parte? El sentido común dice que un
magistrado lo debe ser sin adulteraciones, pero luego llegan los colegas y
aceptan pulpo como animal de compañía.”
(MILLÁS, Juan José. Cuestión de Porcentajes. El País, 6 out 2013. Disponível em: <http://elpais.com/elpais/2013/10/01/eps/1380635932_576211.html>.
Acesso em: 20/02/2014.A expressão "aceptar pulpo como animal de compañía" pode ser traduzida ao português como: "aceitar algo a contragosto", "aceitar o inadmissível" ou, ainda, de uma forma mais coloquial "engolir sapo", expressão usada para referir-se a situações em que temos que ficar quietos diante de situações com as quais não concordamos.
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