segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Aceptamos pulpo como animal de compañía



Na Espanha, assim como no Brasil, a linguagem do dia a dia sofre a influência dos meios de comunicação, das propagandas. Muitas frases originadas dos comerciais, das novelas e dos programas de humor acabam se tornando clichês, chavões na boca do povo. Mais que “clichês”, são verdadeiros “chiclés” grudentos que as pessoas mastigan, mastigam e depois jogam fora. A maioria dessas frases não sobrevive ao tempo, entretanto, algumas conseguem essa proeza e acabam se cristalizando na cultura popular. 

Vamos relembrar algumas dessas frases que caíram na boca dos brasileiros:


"Tô certo, ou tô errado” – frase dita pelo sinhozinho Malta na novela Roque Santeiro


Não é brinquedo não” – frase dita pela Dona Jura na novela O Clone


Cala a boca, Magda!” – frase dita por Caco Antibes no programa Sai de Baixo


Só abro a boca quando eu tenho certeza!” – frase dita pela personagem Ofélia no programa Zorra Total


Você quer pedir ajuda aos universitários?” – frase que ficou famosa num programa de perguntas e passou a ser usada ironicamente a alguém tem dúvidas sobre algo.


Tem mil e uma utilidades!” – frase que ficou famosa com a propaganda da lã de aço Bombril, é usada para referir-se a pessoas ou coisas que têm muitas utilidades.


Olha o tio da Sukita” – frase utilizada para ridicularizar o coroa que dá encima das gatinhas, originou-se da propaganda do refrigerante Sukita, "Quem bebe sukita não engole qualquer coisa!" em que um homem de meia-idade levava um fora de uma mocinha jovem.


Não é assim uma Brastemp” – frase que denota comparação, para dizer que algo não era tão bom quanto se esperava.


Parece mas não é” – frase que ficou famosa graças à propaganda do Denorex, foi utilizada para referir-se a produtos pirateados, falsificações.


Tomou doril” – frase que ficou famosa devido à propaganda de comprimidos contra dor de cabeça Doril, depois disso, quando alguém desaparece do mapa, diz-se que tomou doril.



O tradutor, como sabemos, não traduz apenas palavras, mas sim ideias que estão enraizadas num determinado contexto cultural e histórico, por isso, em dado momento, é normal que acabe se deparando com uma dessas frases clichês ou com referências a programas televisivos, produtos ou qualquer outra coisa que não pertença a seu universo cotidiano. Daí a importância de ler jornais e revistas ou assistir a televisão na língua que traduz e para a qual traduz.



Vejamos um exemplo de duas frases que ficaram famosas na Espanha devido a um comercial televisivo:

¡Aceptamos barco!” e “Aceptamos pulpo como animal de compañía”.



A origem dessas frases deve-se ao comercial de um jogo de tabuleiro chamado Scattergories, que ficou muito popular nos anos 90. No anúncio aparece um cara indo embora com o jogo embaixo do braço. Atrás dele, um casal grita da porta de uma cabana: «¡Aceptamos barco!». O cara que estava indo embora, com atitude de menino mimado, pregunta sem se virar: «¿Como animal acuático?», e o casal responde em uníssono: «Sííí». Deduz-se que o ofendido dono do jogo volta para o jogo. Enquanto isso ouve-se uma voz que explica o funcionamento do jogo. Basicamente, um jogador diz uma letra e outra pessoa seleciona uma categoria. A pessoa deve tentar dizer ou escrever num papel num tempo determinado o maior número de palavras possíveis que comecem com a letra escolhida  e que estejam relacionadas com a categoria em questão. No quadro seguinte, uma jogadora – provavelmente a mesma moça que gritou da porta da cabana no primeiro quandro da propaganda, pergunta-se, com voz melosa, de sonsa, e olhando para seu papel: «Empezando por p, un animal de compañía». Do seu lado, com um olhar libidinoso, encontra-se o dono do jogo, que, insinuando-se, diz: «¡Pulpo!». Ela dá um gritinho, ao mesmo em tempo que o marido, que está de frente para o galanteador, exclama com estranheza e indignação: «¿Pulpo?». Rapidamente, o dono do jogo volta-se para ele com um olhar sério e ameaçador. Não diz nada, mas o significado desse olhar é inequívoco "Ou você aceita polvo como animal de estimação ou vou embora como fiz antes e levo o jogo comigo". O marido responde resignado: «vale» e o comercial acaba.



Apesar de a frase "Aceptamos pulpo como animal de compañía" não chegar a ser dita no comercial, o fato é que a frase consolidou-se e passou a designar qualquer coisa ou situação aceita a contragosto, ou aceitar o inadmissível. A popularidade das frases ultrapassou a oralidade e alcançou a imprensa escrita, como mostra o seguinte fragmento extraído da versão on-line do jornal espanhol El País.




“¿Juez cien por cien o solo en parte? El sentido común dice que un magistrado lo debe ser sin adulteraciones, pero luego llegan los colegas y aceptan pulpo como animal de compañía.”
(MILLÁS, Juan José. Cuestión de Porcentajes. El País, 6 out 2013. Disponível em: <http://elpais.com/elpais/2013/10/01/eps/1380635932_576211.html>. Acesso em: 20/02/2014.

A expressão "aceptar pulpo como animal de compañía" pode ser traduzida ao português como: "aceitar algo a contragosto", "aceitar o inadmissível" ou, ainda, de uma forma mais coloquial "engolir sapo", expressão usada para referir-se a situações em que temos que ficar quietos diante de situações com as quais não concordamos.

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