Tradução: Diana Margarita
Acordei, coberto de suor. Do piso de azulejos vermelhos, recém regados, subia um vapor quente. Uma borboleta de asas cinzentas volteava deslumbrada ao redor do foco amarelado. Pulei da rede e descalço atravessei o quarto, cuidando não pisar em algum escorpião saído de seu esconderijo para tomar ar fresco. Aproximei-me da janelinha e aspirei o ar do campo. Ouvia-se a respiração da noite, enorme, feminina. Voltei para o centro do quarto, esvaziei a água da jarra na bacia de latão e umedeci a toalha. Esfreguei o torso e as pernas com o pano ensopado, enxuguei-me um pouco e, após assegurar-me de que nenhum bicho estava escondido entre as dobras de minha roupa, vesti-me e calcei-me. Desci pulando a escada pintada de verde. Na porta da hospedaria tropecei com o dono, sujeito caolho e reticente. Sentado numa cadeirinha de tule, fumava com o olho semiaberto. Com voz rouca perguntou-me:
— Aonde vai, senhor?
— Vou dar uma volta. Faz muito calor.
— Hum, já está tudo fechado. E não há iluminação pública aqui. Mais lhe valeria ficar.
Levantei os ombros, murmurei “já volto” e enfiei-me no escuro. A princípio não via nada. Caminhei tateando pela rua empedrada. Acendi um cigarro. De repente a lua saiu de uma nuvem negra, iluminando um muro branco, desmoronado a trechos. Detive-me, cego perante tanta brancura. Soprou um pouco de vento. Respirei o ar das tamarineiras. Vibrava a noite, cheia de folhas e insetos. Os grilos acampavam entre as gramas altas. Levantei o rosto: lá em cima também haviam estabelecido acampamento as estrelas. Pensei que o universo era um vasto sistema de sinais, uma conversação entre seres imensos. Meus atos, o serrote do grilo, o piscar da estrela, não eram senão pausas e sílabas, frases dispersas daquele diálogo. Qual seria essa palavra da qual eu era uma sílaba? Quem disse essa palavra e para quem a disse? Joguei o cigarro sobre a calçada. Ao cair, descreveu uma curva luminosa, lançando breves chispas, como um cometa minúsculo.
Caminhei por um longo tempo, devagar. Sentia-me livre, seguro entre os lábios que nesse momento me pronunciavam com tanta felicidade. A noite era um jardim de olhos. Ao atravessar a rua, senti que alguém se afastava de uma porta. Virei-me, mas não acertei a distinguir nada. Apertei o passo. Em alguns instantes percebi umas sandálias de couro sobre as pedras quentes. Não quis virar-me, embora sentisse que a sombra aproximava-se cada vez más. Tentei correr. Não pude. Detive-me em seco, bruscamente. Antes que pudesse me defender, senti a ponta de uma faca nas costas e uma voz doce:
— Não se mexa, senhor, ou vou enterrá-lo.
Sem virar o rosto perguntei:
— O que quer?
— Seus olhos, senhor — respondeu a voz suave, quase com pudor.
— Meus olhos? Para que lhe servirão meus olhos? Olhe, aqui tenho um pouco de dinheiro. Não é muito, mas é alguma coisa. Eu lhe darei tudo o que tenho, se me deixar. Não me mate.
— Não tenha medo, senhor. Não o matarei. Só vou lhe tirar os olhos.
— Mas, para que quer meus olhos?
— É um capricho de minha noiva. Ela quer um buquê de olhos azuis e por aqui há poucos que os tenham.
— Meus olhos não servem. Não são azuis, mas amarelos.
— Ai, senhor, não queira me enganar. Eu bem sei que os tem azuis.
— Não se tiram assim os olhos de um cristão. Eu lhe darei outra coisa.
— No se faça de melindroso, disse-me com dureza. Vire-se.
Virei-me. Era pequeno e frágil. O chapéu de palha cobria-lhe metade do rosto. Sustinha com o braço direito um facão de roça, que brilhava com a luz da lua.
— Ilumine o seu rosto.
Acendi e aproximei o rosto da chama. O resplendor me fez entrefechar os olhos. Ele afastou minhas pálpebras com mão firme. Não podia ver bem. Ergueu-se sobre as pontas dos pés e contemplou-me intensamente.
A chama queimava-lhe os dedos. Joguei-a fora. Permaneceu um instante silencioso.
— Já se convenceu? Não os tenho azuis.
— Ah, como o senhor e teimoso! — respondeu — Deixe-me ver, acenda outra vez.
Risquei outro fósforo e o aproximei de meus olhos. Puxando-me pela manga, ordenou.
— Ajoelhe-se.
Ajoelhei-me. Com uma mão pegou-me pelos cabelos, jogando minha cabeça para atrás. Inclinou-se sobre mim, curioso e tenso, enquanto o facão descia lentamente até tocar minhas pálpebras. Fechei os olhos.
— Abra-os bem — ordenou.
Abri os olhos. A pequena chama queimava-me os cílios. Soltou-me de improviso.
— Pois não são azuis, senhor. Desculpe.
E sumiu. Acordei junto ao muro, com a cabeça nas mãos. Depois me levantei. Aos tropeções, caindo e levantando, corri durante uma hora pelo vilarejo deserto. Quando cheguei até a praça, vi o dono da hospedaria, sentado ainda frente à porta.
Entrei sem dizer uma palavra.
No dia seguinte fugi daquele vilarejo.
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