O mel silvestre
Horacio
Quiroga
Tradução:
Renata C.B. Moreno.
Conto extraído da antologia “Cuentos de amor locura y de muerte”, publicada em 1917.
Tenho em Salto Oriental dois primos, hoje homens já, que aos seus doze anos, e em consequência de profundas leituras de Júlio Verne, deram na rica empreitada de abandonar sua casa para ir viver no monte. Este fica a duas léguas da cidade. Ali viveriam primitivamente da caça e pesca. Verdade é que os dois meninos não tinham lembrado, particularmente, de levar espingardas nem anzóis; mas, de qualquer maneira, o bosque estava ali, com sua liberdade como fonte de felicidade, e seus perigos como encanto.
Desgraçadamente,
no segundo dia foram achados por quem os buscava. Estavam bastante atônitos
ainda, bem fracos, e para grande assombro de seus irmãos menores – iniciados
também em Júlio Verne – sabiam ainda andar em dois pés e recordavam como falar.
A
aventura dos dois ermitões, no entanto, seria talvez mais formal se tivessem
tido como teatro outro bosque menos domingueiro. As escapadelas levam aqui a
limites imprevistos em Misiones, e o orgulho de suas stromboot[I1
arrastou Gabriel Benincasa a esses limites.
Benincasa,
tendo concluído seus estudos de contadoria pública, sentiu fulminante desejo de
conhecer a vida na selva. Não foi arrastado por seu temperamento, pois antes Benincasa
era um rapaz pacífico, gorducho e de cara rosada, em razão de sua excelente
saúde. Em consequência, sensato o suficiente para preferir um chá com leite e bolinhos
a quem sabe que fortuita e infernal comida do bosque. Mas assim como o solteiro
que foi sempre ajuizado crê no seu dever
de, à véspera de seu casamento, despedir-se
da vida livre com uma noite de orgia em companhia de seus amigos, de igual modo
Benincasa quis honrar sua vida engrenada com dois ou três choques de vida
intensa. E por este motivo subia o Paraná até uma obrage, com suas famosas stromboot.
Mal
saído de Corrientes havia calçado suas robustas botas, pois os jacarés da margem
esquentavam já na paisagem. Mas apesar disso o contador público cuidava muito
de seu calçado, evitando arranhões e contatos sujos.
Deste
modo chegou à obrage de seu padrinho, que na hora teve que conter os impulsos de seu sobrinho.
–
Aonde vai agora? – tinha perguntado surpreendido.
–
Ao monte; quero percorrê-lo um pouco – respondeu Benincasa, que acabava de pendurar a winchester no ombro.
–Mas,
infeliz! Não vai poder dar um passo. Segue a trilha, se quiser... Ou melhor,
deixa essa arma, e amanhã mandarei um peão te acompanhar.
Benincasa
renunciou ao seu passeio. Contudo, foi até a margem do bosque e se deteve.
Tentou vagamente um passo adentro, e ficou quieto. Meteu as mãos nos bolsos e
olhou detidamente aquele inextricável emaranhado, assobiando fracamente trechos
incompletos. Após observar de novo o bosque de um lado ao outro, retornou
bastante desiludido.
No
dia seguinte, no entanto, percorreu a trilha central por cerca de uma légua, e ainda que seu fuzil voltasse
profundamente dormido, Benincasa não lamentou o passeio. As feras chegariam
pouco a pouco.
Estas
chegaram na segunda noite, ainda que de
um modo um pouco singular.
Benincasa
dormia profundamente, quando foi acordado por seu padrinho.
–Ei,
dorminhoco! Levanta que vão te comer vivo.
Benincasa
se sentou bruscamente na cama, alucinado pela luz dos três lampiões de vento
que se moviam de um lado a outro no quarto. Seu padrinho e dois peões regavam o
andar.
–
O que foi, o que foi? –perguntou, jogando-se ao chão.
–Nada...
Cuidado com os pés... A correição.
Benincasa
já tinha se inteirado das curiosas formigas a que
chamamos correição. São pequenas, negras, brilhantes e marcham velozmente em
rios mais ou menos largos. São essencialmente carnívoras. Avançam devorando tudo
que encontram pelo caminho: aranhas, grilos, escorpiões, sapos, víboras, e todo
ser que não pode lhes resistir. Não há animal, por grande e forte que seja, que
não fuja delas. Sua entrada em uma casa supõe a exterminação absoluta de todo
ser vivo, pois não há rincão nem buraco profundo onde não se precipite o rio devorador.
Os cães uivam, os bois mugem, e é forçoso abandonar a casa, em troca de ser roído
em dez horas até o esqueleto. Permanecem no lugar um, dois, até cinco dias,
segundo sua riqueza em insetos, carne ou gordura. Uma vez devorado tudo, se
vão.
Mas
não resistem à creolina ou droga similar; e como na obrage havia muita creolina,
em menos de uma hora o chalé ficou livre da correição.
Benincasa
observava muito de perto, nos pés, a placa lívida de uma mordida.
–
Picam muito forte, realmente! – disse surpreendido, levantando a cabeça para
seu padrinho.
Este,
para quem a observação não tinha já nenhum valor, não respondeu,
felicitando-se, em compensação, de ter contido a tempo a invasão. Benincasa
retomou o sono, ainda que sobressaltado toda a noite por pesadelos tropicais.
No
dia seguinte foi ao monte, desta vez com um facão, pois tinha acabado de compreender
que tal utensílio lhe seria bem mais útil no monte que a espingarda. É verdade
que seu pulso não era maravilhoso, e sua pontaria muito menos. Mas, de qualquer
maneira, conseguia quebrar os ramos, açoitar a cara e cortar as botas; tudo em
um.
O
monte crepuscular e silencioso o cansou cedo. Dava-lhe a impressão - exata por
demais – de um cenário visto de dia. Da agitada vida tropical não há a essa
hora mais que o teatro gelado; nem um animal, nem um pássaro, nem um ruído
quase. Benincasa voltava quando um surdo zumbido lhe chamou a atenção. A dez metros
dele, em um tronco oco, diminutas abelhas aureolavam a entrada do buraco. Se
aproximou com cautela e viu no fundo da abertura dez ou doze bolas escuras do
tamanho de um ovo.
–
Isso é mel – disse o contador público com íntima gula - Devem ser bolsinhas de
cera, cheias de mel...
Mas
entre ele, Benincasa, e as bolsinhas, estavam as abelhas. Após um momento de
descanso, pensou em fogo: levantaria uma boa fumaceira. A sorte quis que
enquanto o ladrão se aproximava cautelosamente da folharada úmida, quatro ou
cinco abelhas pousassem em sua mão, sem o picar. Benincasa logo apanhou uma e, oprimindo
seu abdômen, constatou que não tinha ferrão. Sua saliva, já leve, se purificou em
melífica abundância. Maravilhosos e bons animaizinhos!
Em
um instante o contador desprendeu as bolsinhas de cera, e afastando-se um bom
trecho para escapar do pegajoso contato das abelhas, se sentou em uma grande
raiz. Das doze bolas, sete continham pólen. Mas as restantes estavam cheias de
mel, um mel escuro, de sombria transparência, que Benincasa saboreou
gulosamente. Tinha um gosto distinto. De quê? O contador não pôde explicar.
Talvez resina de frutas ou de eucalipto. E por igual motivo, o denso mel tinha um vago sabor áspero. Mas,
em compensação, que perfume!
Benincasa,
uma vez bem seguro de que só cinco bolsinhas lhe seriam úteis, começou. Sua
ideia era singela: colocar o favo gotejante suspenso sobre sua boca. Mas como o
mel era espesso, teve que aumentar o buraco, depois de ter permanecido meio
minuto com a boca inutilmente aberta. Então o mel surgiu, afinando-se em pesado
fio até a língua do contador.
Um
depois do outro, os cinco favos se esvaziaram assim, dentro da boca de
Benincasa. Foi inútil que ele prolongasse a suspensão, e muito mais que repassasse
os balões exaustos; teve que resignar-se.
Enquanto
isso, a sustentada posição da cabeça ao alto tinha-o enjoado um pouco. Pesado
de mel, quieto e os olhos bem abertos, Benincasa considerou de novo o monte
crepuscular. As árvores e o solo tomavam posturas por demais oblíquas, e sua
cabeça acompanhava o vaivém da paisagem.
–
Que enjoo curioso... – pensou o contador. - E o pior é...
Ao
levantar-se e tentar dar um passo, se viu obrigado a cair de novo sobre o
tronco. Sentia seu corpo de chumbo, sobretudo as pernas, como se estivessem
imensamente inchadas. E os pés e as mãos formigavam.
–
É muito estranho, muito estranho, muito estranho! – repetiu estupidamente
Benincasa, sem suspeitar, no entanto, do motivo dessa estranheza - Como se
tivesse formigas... A correição – concluiu.
E
de repente a respiração se cortou seca, de espanto.
–
Deve de ser o mel...! É venenoso...! Estou envenenado!
E
num segundo esforço para levantar-se, seu cabelo arrepiou-se de terror: não podia
nem se mover. Agora a sensação de chumbo e o formigamento subiam até a cintura.
Durante um tempo o horror de morrer ali, miseravelmente só, longe de sua mãe e
seus amigos, lhe coibiu todo meio de defesa.
–
Vou morrer agora...! Daqui a pouco vou morrer...! Já não posso mover a mão...!
Em
seu pânico constatou, no entanto, que não tinha febre nem ardor de garganta, e
o coração e pulmões conservavam seu ritmo normal. Sua angústia mudou de forma.
–
Estou paralítico, é a paralisia! E não vão me encontrar...
Mas
uma visível sonolência começava a apoderar-se dele, deixando-lhe íntegras suas
faculdades, ao mesmo tempo em que o enjoo acelerava. Assim, pensou notar que o solo
oscilante ficava negro e se agitava vertiginosamente. Outra vez veio à sua
memória a lembrança da correição, e em seu pensamento se fixou como uma suprema
angústia a possibilidade de que esse negror que invadia o solo...
Teve
ainda forças para se arrancar desse último espanto, e de repente lançou um
grito, um verdadeiro alarido em que a voz do homem recupera a tonalidade do
menino aterrorizado: por suas pernas subiam um precipitado rio de formigas
negras. Ao redor dele a correição devoradora escurecia o solo, e o contador
sentiu por baixo da cueca o rio de formigas carnívoras que subiam.
Seu
padrinho achou-o finalmente, dois dias depois, e sem a menor partícula de
carne, o esqueleto coberto pela roupa de Benincasa. A correição que vagava ainda
por ali e as bolsinhas de cera o esclareceram suficientemente.
Não
é comum que o mel silvestre tenha essas propriedades narcóticas ou paralisantes,
mas pode acontecer. As flores com igual caráter abundam no trópico, e já o
sabor do mel denuncia na maioria dos casos sua condição – tal como deixou a
resina de eucalipto que Benincasa achou sentir.
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